De que coisas na relação criamos dependência? menu personalizado da vida a dois

140 1 0
                                    

Para que exista dependência afetiva deve haver algo que a justifique: ou evitamos a dor ou mantemos a satisfação. Ninguém se agarra ao sofrimento em si. Sequer os masoquistas se apegam à dor, mas ao deleite de senti-la. O asceta procura iluminação; o monge em seu flagelo, redenção; o suicida, reparação. Em cada caso, o prazer e/ou o sentido de segurança psicológica se mescla até criar uma espécie de "superdroga", altamente sensível ao vício. Esta mistura explosiva nem sempre é evidente: pode aparecer de forma inocente como bem-estar, tranqüilidade, diversão, engrandecimento do ego, confiança, companhia, suporte ou simples presença física. Se pensarmos por um instante em como funciona a dependência afetiva em cada um de nós, veremos que a "supersubstância" (prazer/bem-estar mais segurança/proteção) sempre está presente, porque é o motivo do apego. Sem ela, não há dependência.

Uma paciente de 32 anos não conseguia se separar do marido, apesar do evidente desamor que sentia, de não ter filhos, de ter uma boa posição econômica e de não ter impedimentos morais do tipo religioso. Não havia razão aparente para que ela continuasse nessa relação, ainda mais se considerarmos que o marido era viciado em cocaína e bissexual declarado. Durante várias semanas, tentamos analisar as condições de vida e a história pessoal dela para que pudesse tomar uma decisão entre duas opções possíveis: dar uma nova oportunidade ao marido (creio que era a nona ou a décima) ou se afastar definitivamente. Quando eu tentava chegar ao cerne de suas dúvidas e detectar os fatores que a impediam de sair da relação, nada conseguia explicar seu comportamento. 

Que prazer ou segurança podia obter de tal relação? Um dia qualquer, ela comentou que estava muito cansada porque não conseguira pegar no sono esperando o marido e logo disse: "Tenho muita dificuldade para dormir sozinha. Não é medo de ladrão ou de fantasmas, apenas preciso que alguém me abrace por trás e cuide das minhas costas, como se eu me acomodasse ao espaço deixado pelo outro. Por isso, encho a cama de travesseiros; é como construir um refúgio e me abrigar ali. Quando ele chega bêbado, eu praticamente me cubro com o corpo dele. Acomodo-o junto ao meu corpo como um boneco de pano e, ainda que ele nem perceba, me sinto protegida, abrigada. Pensando bem, acho que para mim é importante dormir com alguém. Será que é por isso que não consigo me separar?"

O caminho havia começado a clarear. Além da evidente irracionalidade e do enorme custo que minha paciente devia pagar para ter um companheiro noturno, a companhia lhe permitia sobreviver a um esquema de perda/abandono. Como o chupar o dedo, o ursinho de pelúcia ou o pedaço de tecido velho que servem de sinal da insegurança de algumas crianças, o contato humano com o parceiro produzia nela a tranqüilidade momentânea para poder dormir (conforto igual a prazer mais segurança). 

De forma surpreendente, o abraço noturno tinha para ela suficiente intensidade positiva para balancear e justificar todo o mal que existia na relação. Uma pitada de bem-estar/proteção em troca de uma vida intolerável.

Essa marcante desproporção somente pode ser explicada pelo desespero induzido pelo medo ou pela desesperança que gera a depressão. A famosa frase de Shakespeare: "Meu reino por um cavalo" poderia parecer uma troca ruim aos olhos de qualquer comerciante experiente, mas se a contextualizarmos no calor do campo de batalha, tendo ficado a pé e sem poder escapar, o negócio é mais do que bom. Do alto da sua realidade distorcida e incapacidade, minha paciente não via outra alternativa, estava desolada e não era capaz de cuidar de si mesma. Como vimos, a maioria das pessoas dependentes é emocionalmente imatura e muito necessitada de cuidado; por essa razão, o colo do marido era o ópio por meio do qual a solidão deixava de doer. A mente é assim.

Enquanto o princípio do prazer e o princípio da segurança estiverem em jogo, mesmo que seja em pequenas doses, a pessoa pode se aferrar a qualquer coisa, em qualquer lugar e de qualquer maneira.

De acordo com a história pessoal, a educação recebida, os valores incutidos e as deficiências específicas, cada um escolhe sua fonte de dependência afetiva ou é escolhido por ela. Ainda que a lista que apresentarei não seja exaustiva, nela aparecem os tipos mais comuns de dependência afetiva observados na prática clínica. Alguns estão mediados por esquemas de má adaptação, e outros por simples gosto ou prazer. Uma pessoa pode se apegar a um tipo, a vários ou, se está muito mal, a todos. As formas listadas são as seguintes: dependência de segurança/proteção; de estabilidade/confiabilidade; de manifestações de afeto, de manifestações de admiração e de bem-estar/prazer de toda boa relação (por exemplo, sexo, mimos, tranqüilidade e companheirismo).

Amar ou depender?Onde histórias criam vida. Descubra agora