O princípio da autonomia ou tomar conta de si mesmo

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Tal como afirmaram psicólogos, filósofos e pensadores em todas as épocas, a liberdade e o medo andam de mãos dadas. Salústio dizia: "São poucos os que querem a liberdade, a maioria quer apenas ter um amo justo". Mas quando as pessoas decidem ser donas das suas vidas e das suas decisões, o crescimento pessoal não tem limites.


A busca por autonomia é uma tendência natural nos sujeitos saudáveis. Mais ainda quando a liberdade é restringida, os humanos normais nunca se dão por vencidos. Desde Espártaco até Mandela, a história da humanidade poderia ser resumida como uma luta constante e persistente para obter a almejada independência, qualquer que seja. Em psicologia, foi demonstrado que as pessoas autônomas, que tomam conta de si mesmas, desenvolvem um sistema imunológico altamente resistente a todo tipo de doença.


Os mestres espirituais de diferentes partes do mundo concordam que, quanto menos necessidades uma pessoa tiver, mais livre será. Contam que, certa ocasião, Sócrates entrou numa loja de objetos variados. Depois de ficar um tempo observando em detalhe cada artigo, saiu do lugar visivelmente assombrado. Quando lhe perguntaram o motivo de sua surpresa, respondeu: "Estou fascinado, quantas coisas de que não preciso!"


Infelizmente, as pessoas que sofrem de dependência afetiva são as que mais bloqueiam a autonomia, porque suas necessidades são fortes demais. A dependência em outro ser humano é a mais difícil de ser banida, ainda mais quando a motivação de fundo é a necessidade de segurança/proteção ("antes mal-acompanhado do que só"). Enquanto o princípio da exploração facilita o ganho de reforçadores e a perda do medo do desconhecido, o princípio da autonomia permite ganhar confiança em si mesmo e perder o medo da solidão.


Um estilo de vida orientado à liberdade pessoal gera, no mínimo, três qualidades psicoafetivas importantes: a defesa da territorialidade, uma melhor utilização da solidão e um incremento na auto-suficiência. Vejamos cada um em detalhe.




A DEFESA DA TERRITORIALIDADE E A SOBERANIA AFETIVA A TERRITORIALIDADE É O ESPAÇO DE RESERVA PESSOAL; SE ALGUÉM O ULTRAPASSA, ME SINTO MAL, POUCO À VONTADE OU AMEAÇADO. É A SOBERANIA PSICOLÓGICA INDIVIDUAL: MEU ESPAÇO, MINHAS COISAS, MEUS AMIGOS, MINHAS SAÍDAS, MEUS PENSAMENTOS, MINHA VOCAÇÃO, MEUS SONHOS; ENFIM, TUDO O QUE SEJA "MEU", QUE NÃO NECESSARIAMENTE EXCLUI O "SEU". SUAS ROSAS, MINHAS ROSAS E NOSSAS ROSAS. UMA TERRITORIALIDADE EXAGERADA LEVA À PARANÓIA E, SE É MINÚSCULA, À FALTA DE ASSERTIVIDADE. O EQUILÍBRIO ADEQUADO É AQUELE NO QUAL AS DEMANDAS DO CASAL E AS PRÓPRIAS NECESSIDADES SE ENCAIXAM RESPEITOSAMENTE.

Ainda que já tenhamos nos referido em parte a esse ponto, é importante sublinhar que sem territorialidade não pode haver uma boa relação. Os casais cem por cento superpostos, além de não-funcionais, são planos e tediosos. Conhecem-se tanto e se contam tantas coisas que seu repertório acaba. Perde-se o encanto do inesperado. Uma coisa é entregar o coração, outra é entregar o cérebro.

Nossa educação exaltou o valor de um casamento fechado e sem segredos, como dizia E. E. Cummings: "Um não é a metade de dois; dois são as metades de um". Siameses, até que a morte os separe. Muitos não gostam que o companheiro não lhe conte tudo porque consideram uma falta de lealdade (obviamente não estou defendendo a mudez voluntária). Mas a transparência total não existe. Mais ainda, às vezes é melhor não perguntar e, em outras, nem contar. Lembro o caso de uma senhora que, como não estava muito bem afetivamente com o marido, começou a se sentir atraída pelo melhor amigo dele. 

Ainda que nunca tivesse ocorrido nada entre eles, em uma noite de farra, já meio altos, ele se animou a dar um beijo nela, e ela não o rejeitou. Um tempo depois, num curso para casais, num ataque de sinceridade, a mulher não somente contou sobre a atração que sentia pelo tal amigo, que entre outras coisas diminuía a cada dia, mas também falou do beijo furtivo. 

Ela ficou tranqüila, leve e em paz consigo mesma, com Deus e com a humanidade; ele ficou deprimido, indignado e com ciúme paranóico. Ambos precisaram de várias sessões de terapia, uma separação temporária e quase um ano de repreensões para voltarem a começar. No entanto, parece que algo se quebrou. 

Ainda hoje, depois de cinco anos, quando a obsessão se ativa, o marido exige mais detalhes daquele beijo. A pergunta é óbvia: valeu a pena comentar aquele deslize? Não poderia ter procurado uma solução menos "sincera" e dramática? A maioria dos homens nunca esquece as puladas de cerca das mulheres.

Em outro exemplo, uma mulher que trabalhava como vendedora de cosméticos para ajudar com os gastos da casa havia decidido abrir sua própria poupança. Por recomendação da mãe e porque o marido era muito tacanho, começou a economizar escondido dez por cento do total de suas vendas para pagar seus gastos. Contribuía com noventa por cento e ficava com dez. Por conselho de um sacerdote e para evitar estar em pecado, confessou ao marido o auto-empréstimo que estava fazendo sem autorização. Melhor seria ter sido presa. As medidas repressivas do marido foram impressionantes. Iam do confisco efetivo dos privilégios até o escárnio público. Teve algum sentido comentar sobre a economia secreta? Em outro caso, um homem cometeu o erro de confessar à mulher que ainda gostava de uma ex-namorada, casada e com filhos, que trabalhava na mesma empresa. 

Não teve vida até pedir demissão do trabalho. Uma jovem a ponto de se casar confessou ao noivo, com quem mantinha relações sexuais freqüentes, que ele não havia sido o primeiro. O projeto de casamento desmoronou.

A idéia não é jogar às escondidas, fomentar a libertinagem e eliminar todo rastro de honra, mas estabelecer os limites da própria privacidade. Algo assim como o sigilo do inquérito. E isso não é desamor, mas inteligência afetiva. A independência (territorialidade) segue sendo a melhor opção para que um casal perdure e não se consuma. Ainda que as pessoas apegadas tenham medo do livre-arbítrio e gostem de ceder espaços, sem autonomia não há amor, somente vício complacente.

Amar ou depender?Onde histórias criam vida. Descubra agora