Primeira

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Tocando: Beautiful Thing – Grace VanderWaal


Lembro-me bem do seu corpo estático. Os braços cruzados segurando seu currículo; um tremor que era perceptível a quem se desse o mínimo trabalho de lhe observar. Aquele suéter que provocava enjoos em qualquer pessoa que entendesse meramente sobre moda. Seu cabelo bagunçado me fazia me questionar se você ao menos teve o trabalho de penteá-lo quando acordou. Mas o que me chamava a atenção realmente eram seus olhos atentos e fixos que, ainda que demonstrassem certa insegurança, me encaravam como ninguém nunca foi capaz de fazer.

Sempre prezei pela sinceridade e a troca de olhares numa conversa e você, com o tempo, mostrou que não só era sincera como me desafiava e não deixava de me fitar. Era a única que ousava me questionar. Não pense que eu admirava isso em você, pelo contrário, te achava petulante. Mas era algo novo e eu estava disposta a ver até onde iria. E acabou indo longe demais.

Seus lábios tocaram os meus num momento em que o álcool corria por minhas veias e que eu não sabia distinguir se o que me aquecia era justamente a bebida que ingeri ou o toque do seu corpo no meu. Estávamos num canto escuro de um evento importante. O quão inconsequente éramos para fazer algo assim, correndo o risco de sermos pegas? Sim, pois correspondi àquele beijo como se minha sanidade dependesse dele. E então, quando você caiu em si, me encarou e correu para longe, sumindo de vista em meio à todas aquelas pessoas engravatadas e cobertas por tecidos caros de vestidos exclusivos. 

Eu sequer participei ativamente do evento. Cumprimentar à todos enquanto tentava contato com você fora um martírio. Mal via a hora de terminar e correr até seu quarto para humilhá-la ao ponto de fazê-la voltar e perceber o quão estúpida foi. Ou acabar com tudo de uma vez por todas e nunca mais te ver. Aquele era o emprego dos sonhos de metade das garotas da sua idade que ansiavam minimamente em crescer e serem reconhecidas e você o jogou fora. Jogou fora uma oportunidade única de crescer. Mas eu não percebi, naquela época, que isso estava fora dos seus planos. Você não queria crescer com a ajuda de alguém. Você queria caminhar com seus próprios pés e conquistar seu espaço. E aquele emprego não era para você o que seria para todas aquelas garotas.

Ainda hoje não sei exatamente onde consegui coragem para bater na porta do seu quarto de hotel: se fora o amor incompreendido que sinto por você ou a vontade de lhe repreender. Apesar da ira que me consumia para cuspir todas as palavras engasgadas, minha coragem foi morrendo à medida que caminhava de um lado para outro naquele salão, com mais um de meus sorrisos falsos nos lábios. Após me abandonar, senti um aperto crescente em meu peito. Mas também senti raiva. Queria que olhasse em meus olhos e me dissesse como ousou ser tão imprudente. Então, ao relembrar do beijo, do calor que me trouxe sensações inexplicáveis e da vontade de mais — maquiada pela raiva de ser contrariada —, subi naquele elevador com lágrimas nos olhos, pernas bambas e mãos tão trêmulas que mal consegui apertar aquele maldito botão. 

Mas ao encarar a vermelhidão que tomava todo o seu rosto, percebi que era tão difícil para você quanto para mim. Era evidente o seu choque quando abriu a porta e me viu do outro lado. Acredite! Eu, no seu lugar, me sentiria exatamente assim: em choque. Provavelmente você percebeu que eu também havia chorado.

Eu ainda não sabia. Eu não entendia. Acredito que ainda não entendo completamente. Você sabe, hoje mais que ninguém, que lidar com sentimentos não é o meu forte. Mas, ao vê-la, não consegui dizer nada antes de abrir e fechar a boca incontáveis vezes tentando encontrar as palavras certas. 

Eu já estava dentro do seu quarto. Havia abandonado a bolsa no sofá e te encarava esperando que se desculpasse; esperando que dissesse que estava arrependida e aquela não era a decisão correta. Que você se precipitou e queria o emprego de volta. Que queria voltar para mim. Mas você não disse nada.

Please Notice | Em revisãoOnde histórias criam vida. Descubra agora