VI. 859 Cacos

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A eternidade conseguia entediar até o mais divertido dos deuses.

Havia vantagem em beleza e juventude eternas, uma destreza sexual de tirar o fôlego, e a perspectiva de que seus dias pudessem ser assim para sempre.

Mas depois de alguns bons séculos de aventuras, revoltas, amores irracionais e guerras sem sentido, era natural que tudo se tornasse um grande... saco. Ficava tão repetitivo que se conseguia prever qual iria ser o argumento de um bêbado na briga de um bar ou qual desculpa o personagem cativante e de passado triste iria dar quando descobrissem que ele é o vilão.

Não havia definitivamente nada de novo em seu mundo para explorar, não com tantas regras e sigilos que transcendiam a magia para o impedir.

Senza achava o próprio mundo tão chato e infeliz que quis brincar com o mundo do outro.

É claro que a interferência em outro mundo era considerado um crime e que poderia ser decapitado — ou pior, preso em seu próprio Pesadelo pelo resto da eternidade —, então teve que começar com cautela.

Um simples pensamento plantado na cabeça de um humano gaiano.

Eu o fiz, sussurrou para o humano. Fiz o homem e depois tirei a mulher de... bom, de uma das costelas dele. Eu vim do vazio e trouxe luz, cadência e morte. Tudo que já foi belo no mundo, tudo que ainda vai ser ruim.

O gaiano que estranhava a loucura de ter ouvido vozes, espalhou a mensagem. E em pouco tempo aquele deus charlatão teve em suas mãos uma comunidade inteira de humanos que seguiam seus ensinamentos. Adotavam sua sabedoria e misericórdia para si.

O deushiano achou tão divertido fazer aquilo. Achou tão, tão diferente de seu mundo chato e chatamente espetacular que não parou por aí.

Se fez um homem também, de carne e osso e mortalidade, e vagou pela Terra espalhando sua mensagem. Prometeu os Céus para eles e a morte terrível do Inferno para aqueles que não o seguissem.

Achou que nunca descobririam seu pequeno passatempo. Não temeu que o encontrariam, nem no que fariam com ele. Tão deslumbrado com a burrice dos pequenos homens em sua teia de aranha, que não percebeu o quão tolo foi também.

Não demorou para que encontrassem seu covil e destrinchassem seu segredo. E sua punição, sentenciada por Atena através da Guia Spirita, foi algo que certamente não previu. Seu corpo imortal foi pregado em uma cruz no centro do círculo de estátuas dos Doze, na Praça das Divindades, para que o vissem. Para que servisse de exemplo do que as Guias fariam se burlassem o acordo.

O deushiano passou e passará o resto de seus infinitos dias pregado na praça.

Baco passou pelo círculo dos Doze a uma distância de três metros e ainda sim conseguiu escutar o gemido baixinho do deushiano na cruz. Na agonia que sentia com seu Pesadelo — o caule de uma rosa espinhenta — posto ao redor de sua cabeça, como uma coroa. Gotejando sangue dourado pelo corpo nu, com a imortalidade na mão, mas sem comida, água ou diversão. Apenas os sons dos pássaros escondidos em pequenos ninhos nas árvores da praça lhe fazendo companhia — e os humanos que ocasionalmente passavam e cuspiam nele.

Havia pouco mais de meio século desde que sua sentença flutuou do Estige para os ouvidos da Alta Guardiã do Olimpo, que o executou com certo pesar pois Senza era querido por todo o território elisiano. Atena agora se via tentando resolver a bagunça que ele deixou para trás na Terra, mas não havia saída para a forte crença que Senza gerou no deus sem rosto.

Em contrapartida, Oke planejava conseguir resolver a situação. Ela tinha um plano. Um plano que começava com Thalassa e abalaria todas as estruturas dos humanos.

Thalassa - Quase SubmersaOnde histórias criam vida. Descubra agora