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A noite tinha sido um borrão.

A luz do sol fronte seus olhos amargava, mas nem de longe o afligia tanto quanto o cheiro de pão fresco que caminhava até ele pela rua de pedra.

Mas não poderia comer ainda, era regra.

Baco havia participado de um ritual de caçada que durou quase dois dias, e não poderia comer nada sólido enquanto o sol não desse lugar para a lua em seu céu. Ele quebrou três costelas, deslocou o ombro, escutou Kyen cantar a canção de Du'a a madrugada inteira e não pôde tomar um único gole de vinho para que a voz do amigo fauno ficasse pelo menos suportável.

Mas podia dizer que estava tranquilo, até feliz, apesar de tudo.

Ele ignorou o cheiro de pão e desligou o carro, ainda encarando o sol sem piedade.

— Que final de semana intenso — disse, deixando os braços caírem no colo.

— Eu estou morto! — Kyen suspirou, no banco do passageiro, jogando o braço sobre os olhos. — Adras deu trabalho pra caralho. Mal estou sentindo meu corpo.

Adras, o centauro cabeça-dura que eles costumavam chamar de amigo, sentiu que estava na hora de dizer adeus e, depois de quase um ano de preparo, deu início a Caçada. Um ritual onde seus amigos mais queridos — sua família — o caçavam às cegas por abetos, carvalhos e faias de 40 metros de altura nos Vales Gregos.

O mais perto da antiga glória deushiana que era permitido em Phanteia. Dois dias de pura violência, dois dias comungando com as raízes de que ele tanto sentia falta.

— Era o nosso mais temido guerreiro. Deu trabalho em vida, vai dar em morte — Baco murmurou depois tentar respirar fundo e sentir a dor dar fisgadas em seu peito. — Aquele maldito centauro! Vai fazer falta.

Kyen bateu com o punho duas vezes sobre o coração, fazendo Baco prestar mais atenção nele.

O fauno estava tão ruim quanto ele. Hematomas no pescoço, um pedaço de flecha ainda enfiado em sua perna e um de seus chifres curvos estava com a ponta lascada. Ele provavelmente teria que ir ao Centro de As para ver aquilo — Kyen chegou a até mesmo pedir para dormir no Templo a fim de não encarar a fúria da irmã Koan.

Naquele estado, cairia na cama e apagaria em questão de segundos.

— A Desonrada ainda está te fazendo cuidar da sujeira que Senza deixou para trás? — O fauno suspirou forçadamente.

Desonrada.

O apelido carinhoso que os elisianos deram à Okeaniye, quando essa emergiu de seu exílio propondo paz apenas para os desafiar.

Era um apelido justo.

O que não era justo era Baco ter que lidar com merdas como as de Senza — o que inclusive, vinha sendo um pé em seu saco divino.

— Sabe que está. Inclusive tenho que visitar uma Devore hoje, algo sobre uma bruxa, ahn... maluca... ou o que seja.

— Uma Devore? As famosas bruxas exiladas? — Baco concordou vagamente com um aceno. O amigo assobiou. — Boa sorte, cara. Tente não ser devorado.

— Eu conheci uma delas em Nova Orleans. Ela não era tão ruim, apenas ranzinza. Mas isso é o que podemos esperar de qualquer um no mundo humano. Eles não sabem aproveitar o pouco que têm.

Kyen o olhou de canto de olho, reprimindo uma careta.

— Sabe que ela não vai conseguir nada por aqui resolvendo as merdas do Senza, certo? Atena não vai ceder o poder apenas porque a Desonrada ajudou a limpar calçadas, colocou cercas brancas nos jardins e levou à justiça um maluco por poder.

Thalassa - Quase SubmersaOnde histórias criam vida. Descubra agora