III. 527 Tentativas

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Havia um gato cinza na janela da cozinha do apartamento de Thalassa D'Angelo.

Andava de um lado para o outro como se não se importasse de estar a beira de uma queda do vigésimo quarto andar de um prédio em Nova York. Mas é claro que ele não se importava, se desse um passo em falso para trás podia simplesmente desaparecer no ar e voltar para onde estava há um segundo. Como ela já tinha visto ele fazer, exatos 70 dias antes, saltando entre a mesa de centro e o colo dela.

Entender como certas coisas poderiam acontecer era em vão.

E era uma espécie de tortura aquilo ali, Thalassa sabia.

Não para ela, já que havia se acostumado com a presença constante e sorrateira dele àquela altura. Mas para ele que, ainda que não tivesse dado qualquer indício que sabia sobre a conversa dela com Oke naquela praia, sempre se mantinha numa distância saudável.

Menos da última vez que visitou. Não, na última vez ela quase perdeu tudo.

E talvez devesse muito mais que a própria vida à Baco depois daquele dia. Mas ela não admitiria.

Eram duas da manhã. Thalassa estava em seu apartamento-esconderijo e Chase Atlantic tocava no sistema de som. Seu corpo tremia como se em crise abstinência, mas estava tudo bem porque ela tinha um copo de liquidificador cheio de margarita recém batida em sua frente.

O gato a encarava quase sem piscar, respirar, se mover. Se se importasse, ela pensaria que ele virou estátua — o que seria um tremendo alivio para sua alma cansada.

Era o dia 527.

Era mais da metade dos dias. Faltava muito pouco para tudo aquilo ir para o inferno.

Mas ela ainda tinha muita margarita e muita tequila para fazer mais margarita, então ainda estava tudo bem. Por que se importar? Por que perder tempo com perspectivas tão limitadas, tudo estava para acabar. E aquele gato, aquele maldito gato, estava ali para lembrá-la daquilo.

— Está bebendo há quanto tempo sem parar? — O gato perguntou depois de quase dez minutos de silêncio, enfim parando de andar.

28 dias, ela quis responder. 259 drinques — 260 com o que ela estava tomando no momento — e, talvez, 18 refeições. Talvez menos. 6 banhos, um número sofrível para uma dama. 14 crises de choro. 6 explosões de raiva. Nenhum pesadelo.

Ela tinha se tornado muito boa com números desde Nova Orleans.

Contava os segundos tão bem quanto virava aqueles copos na boca para satisfazer o desejo doentio que sua carne humana sentia por estar respirando.

Em casa.

Se é que podia se sentir em casa embaixo daquela pele de assassina.

— Eu não sei, me diz você — respondeu, balançando a taça para ver o líquido girar. E dessa vez tinha certeza que ele não leria a verdade em seus olhos. Nem em sua mente. — Krasi? Toque Habits of My Heart.

Baco, aquele era o nome favorito dele, piscou e ela podia jurar que ele ficou estático ao ouvi-la dizer aquele nome. Quase como se o gesto de ter trocado o nome da inteligência artificial para o grego de uma das coisas mais importantes para ele significasse alguma coisa.

Quando na verdade ela só gostava da sensação de saber que o afetava. Não tinha um motivo para aquilo, no entanto.

Aqui está a música Habits of My Heart de James Young, a voz eletrônica respondeu, deixando que o som corresse pela sala.

Ela estava sentada em um dos banquinhos de ferro branco do balcão, a cabeça apoiada na mão tatuada. Passara a última hora inteira pensando em tomar seu sétimo banho e usava apenas um roupão felpudo da cor vinho. Seu reflexo no espelho ao lado do balcão era uma bagunça. Ela era uma bagunça. Um desperdício total de vida.

Thalassa - Quase SubmersaOnde histórias criam vida. Descubra agora