Buraco de Rato - Jubileu

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Mesmo que seu rosto estivesse molhado de suor, Beto sabia que nunca usaria suas mãos para limpar-se. Aproximar as mãos do rosto era mais uma possibilidade de ficar doente.

O primeiro andar era uma casa e outrora fora bonita, aquecida e cheirosa. Talvez a família que viveu aqui cuidasse bem dela; não era apenas uma casa, era um lar. Ou foi.

Após despejar o conteúdo do balde na privada podre, ele o colocou no chão e decidiu não agir tão rápido quanto planejou.

Há dois anos que eles estavam escondidos e a comida havia acabado há tempos, às vezes uma coisa mofada aparecia ali ou um pedaço de vegetal cru aqui. Houve comidas em latas na casa, houve água e houve recursos. Só que acabou.

Só Deus sabia como eles dois ainda não tinham enlouquecido ou morrido.

Não havia comida ou água limpa — a água que eles bebiam era suja, com gosto de ferrugem e que causava enjoos e dor de barriga —, não havia como eles trocarem de roupas, estavam com as mesmas há dois anos.

Beto imaginou como alguém acreditaria nele. A mesma roupa há dois anos? Que besteira, isso é impossível!

A coisa é: Não acreditamos em tudo aquilo que ouvimos. Esse é um dos problemas de tudo.

No inicio uma daquelas mulheres veio no andar de cima e pegou ovos para que eles comessem cru mesmo, já que não podiam cozinhar nada. Ou falar muito alto. Até mesmo evitavam andar.

Passavam dias inteiros sentados no mesmo lugar. Dias depois da primeira morte, eles já tinham lugares marcados no chão, nem um centímetro a mais ou a menos, o espaço não acomodava tantas pessoas e o calor delas se tornava insuportável.

De novo, com pesar, Beto pensou que se contasse a alguém, essa pessoa não acreditaria.

Seu corpo estava fraco e é um milagre que ele teve forças para subir os degraus que o levaram até ali.

Quando aquela criança morreu, estava tão fraca que tremeu antes de cair e quando caiu Beto pensou "Isso vai acontecer comigo, sou o próximo" e seu desejo era de nunca ser o próximo.

Mas ele seria se fosse para salvar Maurício.

***

Maurício queria ligar o rádio, mesmo agora, quase amanhecendo. Ele sentia que estava amanhecendo mesmo que não pudesse sentir o sol na sua pele há um tempo. Ele às vezes conseguia imaginar sentir coisas que não sente mais, de alguma forma sombria, ele conseguia.

Ele queria afastar o silêncio tão bem quanto a luz afastava as sombras.

Ele queria ver Beto de novo. Queria que ele chegasse logo para que seu coração se acalmasse. Mauricio continuava suando e tremendo e todos os odores haviam se tornado piores. Ele havia urinado no chão e não conseguia se mover para sair do canto.

Seus lábios estavam rachados e sua língua não conseguia ajudar. Até ela estava seca.

Sua situação era deplorável.

Ele olhou ao redor o melhor que conseguia e tentou se lembrar do que haviam pegado primeiro quando saíram depois que os outros morreram. Talvez tenha sido o sabão que agora é apenas um pedaço menor que seu dedo. Talvez tivesse sido algum livro; ler não era algo que Beto ou ele faziam com frequência. Tiveram tempo demais agora.

Todas as coisas que eles pegaram, que comeram, todos os corpos que colocaram para fora... aquilo os transformou. Enquanto seus corpos enfraqueciam e definhavam, suas mentes absorviam tudo, se traumatizaram e deixava que pensamentos medonhos invadissem seus sonhos.

Não era vida para alguém.

Ele só esperava que quando tudo isso acabasse as pessoas se lembrassem da Guerra como algo real e possível — longínqua e mesmo assim, possível — porque a guerra é possível, sim. mortes, doenças, medos, escassos... Maurício tremeu compulsivamente. Parecia que seus órgãos estavam tentado saltar pela garganta e pelo nariz.

Seus olhos pesadosfecharam-se finalmente. Ele desejou que fosse a última vez — não aguentava maistanta dor.

Maiores Que Muita Coisa (Romance Gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora