Ainda lembro que, quando criança, costumava ver hematomas pelo corpo da minha mãe. Eu perguntava onde ela tinha se machucado e a resposta era sempre a mesma; bati na estante, no guarda-roupa, na lavanderia. Acreditava nisso, porque quando eu batia alguma parte do meu corpo naqueles lugares, também ficava com hematomas, uma mistura de roxo com amarelo se formava em minha pele e gerava a preocupação da minha mãe. Ela perguntava se alguém tinha batido ou se o meu pai tinha ficado bravo comigo quando ela saía para o mercado ou para pagar algumas contas, não entendia porque ela ficava com medo e pedia para eu falar a verdade, para não lhe esconder nada. Só fui entender o que de fato acontecia depois de assistir um filme na escola a respeito de violência doméstica e me dei conta de que os machucados de mamãe não ficavam expostos nos mesmos lugares de antes, eram mais escondidos e, para vê-los, só era possível se a visse tirando a roupa.
Uma vez tive o desprazer de esbarrar com essa cena diante de mim, quando abri a porta do banheiro para ir tomar banho, lá estava mamãe de sutiã e calcinha virando de um lado para o outro em frente ao espelho, examinando os machucados em seu corpo. Eram feios, muito feios, e eu só fiquei parada tentando imaginar onde ela tinha se batido daquela vez. Minha mãe puxou a toalha em cima do box do banheiro e se cobriu com pressa, ela não queria que eu a visse e tentou me falar que tinha levado uma queda na semana passada, batendo com as costelas nos degraus da escada do mercado. Mas não era verdade, aquilo não tinha a menor probabilidade de acontecer, não sem ela ter sido internada no hospital com traumatismo craniano. O amarelado nas suas costelas iam até às suas costas e dava para ver que doía, porque enquanto segurava a toalha e tentava me empurrar para fora do banheiro, ela fez cara de dor bem brevemente.
Aí eu percebi que aquele machucado, como todos os outros, eram frutos de agressões e que elas vinham de meu pai. Meu tão amado pai, que nunca sequer tinha levantado a voz para mim, fazia coisas bem piores com a minha mãe. Nunca o vi levantando a mão para a minha mãe, mas às vezes, quando acordava de madrugada para ir ao banheiro ou para beber um copo de água, escutava cochichos vindo do quarto deles. Encostava a cabeça na porta e ouvia minha mãe pedindo desculpas repetidas vezes, a voz embargada pelo choro que cessava depois de um barulho.
Depois que comecei a desconfiar das coisas que meu pai fazia, nunca mais consegui olhá-lo com os mesmos olhos. Ele fazia um tremendo esforço para que eu o visse como o melhor pai do mundo, me comprava os melhores presentes, me levava para tomar sorvete, mas quando ele recebia uma ligação e ficava bravo, ou quando eu fazia alguma coisa errada, eu fechava os olhos e pedia desculpas.
— Desculpa pelo que, filha? — ele perguntava, se agachando no chão para ficar na minha altura. — Papai não vai te bater. Você é a minha princesinha, lembra?
Como alguém que era tão bom e amoroso comigo era capaz de machucar a pessoa que eu mais amo no mundo? Aquilo não entrava na minha cabeça, muito menos quando via mamãe no dia seguinte esbanjando sorrisos para todos em casa. Ela agia como se nada tivesse acontecido e pela idade que eu tinha, eu acreditava nisso. Nas vezes que via um machucado pelo seu corpo, eu só encarava, não perguntava mais nada, quando mamãe percebia me dizia que estava tudo bem.
Mas um dia, com meus quinze anos, me atrevi a fazer a pergunta que ela tanto temia em ouvir de um dos seus filhos.
— Por que você não o deixa? — eu perguntei.
Ela olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas, achei que ia responder porque abriu a boca, mas logo a fechou e forçou um sorriso que partiu o meu coração em dois pedaços; um por ela e outro por mim. Por ela porque com aquela pergunta eu vi o quanto ela já tinha perguntado isso a si mesma. E por mim porque sabia o que meu pai fazia com ela e ficava calada, em silêncio, sem pedir ajuda a ninguém. Me sentia cúmplice de meu pai, não batia na minha mãe, mas o meu silêncio era tão doloroso quanto um tapa na cara ou um chute nas costelas.
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EXtraconjugal (Romance lésbico)
RomanceBianca sabia que Clarissa Ferrari reunia todos os atributos que um homem desejava em uma mulher, ela só não poderia imaginar que o laço que uniria as duas não seria apenas o fato de dividirem o mesmo homem.