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O senhor Bucket

A alegoria parece bem fresca em Lincoln's Inn Fields, conquanto a tarde esteja quente, pois ambas as janelas do Sr. Tulkinghorn estão escancaradas e a sala é alta, desabrigada e lúgubre. Essas características podem não ser desejáveis quando chega novembro com nevoeiro e geada, ou janeiro com gelo e neve, mas tem suas vantagens no tempo das longas férias sufocantes. Tornam possível o aspecto toleravelmente frio da Alegoria naquela noite, ainda que suas faces pareçam pêssegos, seus joelhos cachos de flores, e ela tenha róseos inchaços como barrigas de perna e músculos nos braços.

Enorme quantidade de poeira entra pelas janelas do Sr. Tulkinghorn e quantidade maior ainda se aninhou entre seus móveis e papéis. E espessa por toda a parte. Quando alguma brisa do campo transviada se amedronta e desata numa cega carreira para sair de novo, joga tanta poeira nos olhos da Alegoria quanto a lei — ou o Sr. Tulkinghorn, um de seus mais fiéis representantes — pode espalhar, quando preciso, nos olhos dos leigos.

No seu sombrio armazém de pó, mercadoria universal na qual seus papéis e ele próprio, e todos os seus clientes e todas as coisas da terra, animadas, e inanimadas se convertem, o Sr. Tulkinghorn está sentado diante de uma das janelas abertas, saboreando uma garrafa de velho vinho do Porto. Apesar de ser homem de índole severa, fechado, seco e calado, sabe saborear o vinho velho nas melhores disposições. Tem um lote inestimável de vinho do Porto em alguma adega engenhosa sob os Campos, que é um dos seus muitos segredos. Quando janta só em seus aposentos, como jantou hoje, tendo recebido do café próximo sua posta de peixe e seu bife ou seu frango, desce com uma vela às regiões reboantes por baixo da mansão deserta e, tendo como arauto o eco remoto de portas trovejantes, volta gravemente, cercado duma atmosfera terrestre, e trazendo uma garrafa da qual extrai um néctar radiante, velho de meio século, que enrubesce dentro do copo por se sentir tão famoso, e enche toda a sala do aroma de uvas meridionais.

O Sr. Tulkinghorn, sentado ao crepúsculo, junto à janela aberta, saboreia o seu vinho. Como se este cochichasse para ele a respeito dos seus cinquenta anos de silêncio e reclusão, fá-lo ficar ainda mais calado. Mais impenetrável do que nunca, Dica sentado, e bebe e se embriaga, por assim dizer, em segredo, meditando, àquela hora crepuscular, em todos os mistérios que conhece, associados aos negros bosques da região e às vastas casas vazias e fechadas da cidade. E talvez conceda a si próprio um ou dois pensamentos, à história de sua família, de seu dinheiro, de seu testamento — tudo um mistério para toda a gente — e àquele seu amigo solteirão, homem do mesmo molde e também advogado, que viveu a mesma espécie de vida até os setenta e cinco anos, e depois, subitamente, imaginando (como se supõe) que a vida era demasiado monótona, numa tarde de verão deu seu relógio de ouro a seu cabeleireiro e encaminhou-se despreocupadamente para o Temple e lá se enforcou.

Mas naquela noite o Sr. Tulkinghorn não está só, a meditar com a sua habitual prolixidade. Sentado à mesma mesa, embora com sua cadeira modesta e incomodamente afastada um pouco dela, está sentado um homem calvo, pacífico e reluzente, que tosse respeitosamente por trás da mão quando o advogado lhe ordena que encha seu copo.

— Ora, Sr. Snagsby — diz o Sr. Tulkinghorn —, é para examinarmos de novo minuciosamente essa estranha história.

— À sua vontade, senhor.

— Dizia-me o senhor que quando teve a bondade de vir até aqui na noite passada ...

— Pelo que devo pedir-lhe desculpa, se isso foi uma liberdade da minha parte, senhor. Mas lembro-me de que o senhor havia tomado certa espécie de interesse por aquela pessoa, e pensei ser possível que o senhor quisesse... apenas... desejasse...

O Sr. Tulkinghorn não é homem para ajudá-lo em qualquer conclusão, ou para admitir alguma coisa relativa a qualquer possibilidade a ele próprio concernente. De modo que o Sr. Snagsby vai dizendo arrastadamente, com uma terrível tosse: — Acho que devo pedir-lhe que me desculpe a liberdade, senhor.

A Casa Soturna (1870)Onde histórias criam vida. Descubra agora