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Um dia e uma noite de inverno

Ainda impassível, como convém à sua criação, a casa urbana dos Dedlocks conserva sua atitude habitual em relação à rua de lúgubre magnificência. Cabeças empoadas aparecem de vez em quando nas pequenas janelas do vestíbulo, contemplando o pó não-taxado que cai do céu o dia inteiro; e na mesma estufa há flor de pêssego virando-se exoticamente para o fogo do grande vestíbulo, a proteger-se do tempo inclemente lá de fora. Divulgou-se que Lady Dedlock seguiu para Lincolnshire, mas que é esperada a qualquer momento.

O boato, demasiado ativo, entretanto, não chegará até Lincolnshire. Persiste em adejar e tagarelar pela cidade. Sabe que aquele pobre homem infeliz, Sir Leicester, foi muito maltratado. Houve toda espécie de coisas desagradáveis. Enche de alegria o mundo em cinco milhas em redor. Ignorar que se passa qualquer coisa de grave em casa dos Dedlocks é passar a si próprio atestado de imbecil. Um dos feiticeiros de bochechas cor de pêssego e de garganta de esqueleto já está informado de todas as principais circunstâncias que serão presentes aos Lordes no pedido de divórcio de Sir Leicester.

Na casa dos joalheiros Blaze e Sparkle e na dos armarinheiros Sheen e Gloss, isto é e será durante horas o tópico da época, o traço característico do século. As freguesas daqueles estabelecimentos, apesar de imperscrutáveis na sua altanaria, sendo lá pesadas e medidas tão à justa como qualquer outro objeto do estoque da casa, são perfeitamente compreendidas nesta nova moda pelo mais novato dos auxiliares de balcão. — Nossa gente, Sr. Jones — diziam Blaze e Sparkle ao auxiliar em questão ao contratarem-no —, nossa gente, senhor, são carneiros — meros carneiros. Onde vão dois ou três marcados vai todo o resto. Traga de olho aqueles dois ou três, Sr. Jones, e o rebanho todo será seu. — O mesmo dizem Sheen e Gloss ao Jones deles, com referência ao modo de ter os elegantes e de pôr em moda aquilo que eles (Sheen e Gloss) escolherem. Baseado em idênticos princípios infalíveis, o Sr. Sladdery, bibliotecário, e, na verdade, grande criador de soberbos carneiros, confessa nesse mesmo dia o seguinte a um amigo: — Ora, sim, senhor, existem decerto boatos relativos a Lady Dedlock, muito correntes entre os meus conhecidos da alta roda. Como vê, meus conhecidos da alta roda têm de conversar a respeito de alguma coisa; e basta pôr em voga um assunto sugerindo-o a uma ou duas senhoras cujos nomes eu poderia citar, para fazer que ele se transmita ao resto. Justamente o que eu devia ter feito, meu senhor, com aquelas damas, no caso de ter o senhor deixado aqui qualquer novidade para eu a lançar em moda, elas fizeram por conta própria neste caso, conhecendo, como conhecem, Lady Dedlock, e também por terem talvez um pouco de inocente inveja dela. O senhor verá que este tópico se tornará muito popular entre os meus conhecidos da alta roda. Se se tratasse de uma especulação comercial, daria muito dinheiro. E quando digo isso, pode estar certo de que tenho razão, porque uma das minhas precauções tem sido estudar os meus conhecidos da alta roda, e tornar-me capaz de dar-lhes corda como a um relógio.

Assim o boato medra na capital e não chegará até Lincolnshire. Às cinco e meia da tarde, tempo da Guarda Real, o boato até deu azo a uma nova observação da parte do Exmo Sr. Stables, observação essa que promete eclipsar a antiga da mesma autoria, e sobre a qual durante tanto tempo repousou a sua fama de causeur. De acordo com esta novíssima e cintilante frase de espírito, conquanto sempre tivesse sido do conhecimento do Sr. Stables que ela era o espécime mais bem cuidado da coudelaria, nunca supôs que fosse um animal desbriado. O chiste teve larga aceitação entre os turfistas.

Em banquetes e festas também, em firmamentos que ela tantas vezes adornou e entre constelações onde até ontem eclipsava outras, é ela ainda o assunto predominante? Que é? Quem é? Quando foi? Como foi? Ela é discutida por seus queridos amigos no mais elegante calão em voga, com a última palavra nova, a última maneira nova, o último novo modo de falar arrastado e vagaroso, e com a perfeição de delicada indiferença. Uma notável característica do tema é que o acham tão ilustrativo que pessoas as quais antes eram uns ilustres anônimos agora se tornam faladas e, por sua vez, falam tanta coisa! Guilherme Buffy carrega uma dessas agudezas do lugar onde janta para a Câmara, onde o líder do seu partido a vai passando em roda como faz com a sua tabaqueira, para encurralar dentro da sala para a hora das votações os que querem escapulir, dando em resultado que o presidente (que já teve o cuidado de acolhê-la à puridade dentro do ouvido, por baixo da ponta da peruca) chama três vezes, mas sem fazer mossa: — Ordem, ordem no recinto!

A Casa Soturna (1870)Onde histórias criam vida. Descubra agora