Perseguição
Impassível, como convém à sua alta criação, a casa urbana dos Dedlocks fita as outras casas da rua de lúgubre magnificência, e não dá nenhum sinal exterior de que haja lá dentro algum desconserto. Ouve-se o barulho de carruagens, o bater de portas, o falario das visitas; antigos feiticeiros com gargantas de esqueleto e bochechas cor de pêssego que trazem em si uma florescência quase de fantasma quando são vistos à luz do dia — tempo em que efetivamente essas fascinantes criaturas se assemelham à Morte e à Dama da casa fundidas uma na outra, deslumbram os olhos dos homens. Das frígidas estrebarias saem, gingando comodamente, carruagens guiadas por cocheiros de pernas curtas e chinós louros, quase afogados entre os felpudos panos do coche; e atrás vêm montados luzidos Mercúrios, levando seus bastões de gala e usando tricórnios espaventosos — um espetáculo digno de ser visto pelos anjos...
A casa urbana dos Dedlocks não muda externamente, e horas se passam antes que seja perturbada sua excelsa monotonia interna. Mas a formosa Volúmnia, estando sujeita como os demais à queixa geral do aborrecimento e achando que a doença do tédio ataca seu espírito com certa virulência, aventura-se por fim a buscar refúgio na biblioteca para mudar de cenário. Como sua leve pancada na porta não logra resposta, ela abre-a e espia; não vendo lá ninguém, toma posse do lugar.
A viva Dedlock goza em Bath, aquela cidade dos antigos coberta de erva, a reputação de ser estimulada por uma curiosidade premente, que a impele em todas as ocasiões, próprias ou impróprias, a andar com uma lente de ouro no olho, escabichando todos os objetos possíveis e imagináveis. O certo é que ela aproveita a oportunidade para librar-se como um pássaro sobre as cartas e papéis de seu parente, dando uma bicadinha nesse papel, lançando uma olhadela, com a cabeça à banda, àquele outro, e saltitando de mesa em mesa, com a lente no olho, infatigável nas suas pesquisas de curiosa. No decorrer dessas investigações, tropeça em alguma coisa e, voltando a lente para aquela direção, vê seu parente caído no chão como uma árvore derribada.
O favorito gritinho de Volúmnia adquire considerável aumento de realidade com aquela surpresa e imediatamente a casa entra em polvorosa. Criados sobem e descem correndo as escadas, campainhas são tangidas violentamente, mandam-se chamar médicos e procura-se debalde Lady Dedlock em todas as direções. Ninguém mais a viu ou ouviu desde que da última vez ela tocou a campainha de chamada. Em cima da mesa dela é descoberta a carta que escreveu a Sir Leicester; ignora-se, contudo, se ele não tenha recebido uma outra missiva dum outro mundo, exigindo uma resposta pessoal; e todas as línguas vivas e mortas são a mesma coisa para ele.
Colocam-no em sua cama, aquecem-no, esfregam-no, abanam-no, põem-lhe gelo na cabeça e tentam vários meios para fazê-lo voltar a si. Não obstante, o dia foi passando e já é noite em seu quarto, antes que sua respiração estertorosa se acalme ou seus olhos fixos deem qualquer demonstração de vida diante da vela que de vez em quando passa diante deles. Mas essa modificação, uma vez começada, continua; e pouco a pouco ele faz sinais com a cabeça, ou move os olhos, ou mesmo a mão, indicando que ouve e compreende.
Sucumbiu essa manhã um belo e majestoso cavalheiro, um tanto doente, mas de elegante presença e com um rosto bem cheio. Jaz na sua cama um homem de idade, de faces cavadas, sombra decrépita do que foi. Sua voz era rica e melodiosa; e durante tanto tempo estivera ele inteiramente persuadido da importância que para a humanidade tinha qualquer palavra sua, que suas palavras realmente vieram a soar como se contivessem em si alguma coisa de peso. Agora, porém, ele só pode cochichar; e o que ele cochicha soa como o que realmente é: umas coisas indiscriminadas e incompreensíveis.
Sua preferida e fiel governanta está à sua cabeceira. É o primeiro fato que ele percebe, e claramente demonstra sentir prazer com isso. Depois de tentar em vão fazer-se entender falando, faz sinais pedindo um lápis; mas o faz de uma forma tão inexpressiva, que a princípio não logram compreendê-lo. É sua fiel governanta quem descobre o que ele deseja e lhe traz uma lousa.