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A narrativa de Ester

Logo depois que eu tivera aquela conversa com meu tutor, certa manhã ele colocou um papel selado em minha mão e disse:

— Isto é para o próximo mês, minha querida.

Encontrei dentro dele duzentas libras.

Comecei então sossegadamente a fazer os preparativos que julguei necessários. Regulando minhas compras pelo gosto de meu tutor, que naturalmente eram bem do meu conhecimento, arrumei meu enxoval de modo que fosse do seu agrado, e tive esperança de que não me sairia mal na minha empresa. Fazia tudo isso tão sossegadamente, porque não conseguia livrar-me inteiramente da minha antiga apreensão de que Ada havia de ficar um pouco triste, e porque meu tutor se mostrava tão sossegado. Não tinha dúvida de que, em qualquer circunstância, deveríamos casar-nos na maior intimidade e simplicidade. Talvez eu tivesse apenas de dizer a Ada: "Gostarias de vir assistir ao meu casamento amanhã, meu bem?" Talvez nosso casamento pudesse ser tão modesto como o de Ada, e não fosse preciso falar a respeito dele senão depois de realizado. Eu pensava que, se tivesse de escolher, gostaria mais desta última forma.

Abri uma exceção para a Sra. Woodcourt. Contei-lhe que ia casar com meu tutor e que já estávamos noivos havia algum tempo. Ela deu toda a sua aprovação. Fazia tudo por me ajudar e mostrava-se notavelmente delicada agora, em comparação com o que tinha sido no começo do nosso conhecimento. Não havia incômodo que a impedisse de me ser útil, mas creio não ser preciso dizer que eu só lhe permitia fazer o pouco que pudesse contentar sua bondade sem sobrecarregá-la.

É claro que não era essa uma ocasião para me descuidar de meu tutor, e tampouco da minha querida Ada. De modo que vivia muito atarefada, e isso me agradava. Quanto a Charley, andava toda absorvida nas costuras. Cercar-se de grandes montes de coisas para costurar, com cestas e mesas cheias, e costurar um pouco, gastar grande quantidade de tempo olhando com seus olhos redondos para tudo quanto tinha de ser feito, e persuadir-se de que ia fazê-lo — eis o que para Charley constituía negócio muito importante e ameno.

Entrementes, devo confessar, não podia concordar com meu tutor a respeito do testamento, e nutria grandes esperanças relativamente a "Jarndyce e Jarndyce". Breve se verá qual de nós tinha razão, mas é certo que eu estimulava as expectativas. Em Ricardo, a descoberta deu ensejo a uma explosão de atividade e agitação que o animou por algum tempo; mas ele havia perdido a elasticidade até mesmo da esperança, e parecia-me que dela conservava apenas a febril ansiedade. De alguma coisa que meu tutor me disse um dia no qual conversávamos a esse respeito, depreendi que meu casamento só se realizaria depois da audiência que deveríamos esperar, segundo nos haviam informado; e por isso pensei quão mais alegre eu ficaria se me pudesse casar quando Ricardo e Ada estivessem um pouco mais prósperos.

A audiência estava de fato bem próxima, quando meu tutor foi chamado para fora da cidade e seguiu para Yorkshire, a fim de tratar do negócio do Sr. Woodcourt. Dissera-me ele de antemão que sua presença seria necessária ali. Uma noite eu acabava de voltar da casa de Ada e estava sentada no meio de todas as minhas roupas novas, examinando-as e refletindo, quando me trouxeram uma carta do meu tutor. Pedia-me que me fosse reunir a ele no campo e mencionava qual a diligência que eu devia tomar e a que horas da manhã deveria deixar a cidade. Um pós-escrito acrescentava que eu não estaria afastada de Ada muitas horas.

Esperava tudo, menos uma viagem naquela ocasião, mas fiquei pronta para ela em meia hora e parti, conforme estava marcado, na manhã seguinte bem cedo. Viajei o dia inteiro, imaginando durante todo o tempo por que se necessitava da minha presença a tal distância; ora pensava num motivo, ora noutro, mas nunca, nunca, nunca me aproximei da verdade.

Era noite quando cheguei ao fim da jornada e encontrei meu tutor à minha espera. Foi para mim um grande alívio, pois pela tardinha começara a recear (tanto mais quanto sua carta era muito curta) que ele estivesse doente. Mas lá estava ele, e gozando excelente saúde; e, quando vi seu rosto amável novamente na sua melhor e mais luminosa expressão, disse comigo mesma que ele estivera praticando mais alguma outra grande bondade. Não que fosse necessária muita penetração para afirmar isso, pois eu sabia que sua estada ali já era um ato de bondade.

A Casa Soturna (1870)Onde histórias criam vida. Descubra agora