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O testamento de Jo

Enquanto Allan e Jo prosseguem ao longo das ruas, onde as altas agulhas das igrejas e as distâncias se mostram tão próximas e tão claras, à luz da manhã, que a própria cidade parece renovada pelo repouso, Allan vai pensando como e onde alojará seu companheiro. "É realmente um fato estranho", reflete, "que, em pleno coração de um mundo civilizado, seja mais custoso arranjar um destino para esta criatura com forma humana do que para um cão sem dono." Mas nem por causa de sua estranheza esse fato deixa de existir, persistindo a dificuldade de resolvê-lo.

A princípio olha ele para trás muitas vezes, para se certificar de que Jo o está realmente seguindo. Mas, olhe para onde olhar, ainda o avista perto das casas opostas, caminhando com a mão prudente a tocar de tijolo em tijolo e de porta em porta e, muitas vezes, enquanto assim anda com cautela, lançando para Allan um olhar vigilante. Em breve satisfeito por verificar que a última coisa que passa pela cabeça do menino é fugir, Allan continua a ponderar com a atenção menos dividida o que lhe cumpre fazer.

A primeira coisa que deve fazer lhe é sugerida por uma bodega a uma esquina de rua. Para ali, olha ao redor e chama Jo. Este atravessa a rua e chega coxeando e acanhado, esfregando lentamente os nós dos dedos da mão direita dentro do côncavo da esquerda, amassando imundície naquele almofariz e pilão natural. O que para Jo representa um opíparo banquete é colocado diante dele, e ele começa a engolir o café e a mastigar o pão com manteiga, olhando ansioso em volta de si e em todas as direções enquanto come e bebe, como um animal assustado.

Mas está tão doente e alquebrado que até a fome o abandonou.

— Pensei que estava quase morto de fome, meu senhor — diz Jo, deixando dentro em pouco de comer —, mas não me interesso por coisa alguma, nem mesmo por isto. Não me apetece a comida nem a bebida.

E Jo está ali a tremer, olhando curioso para o almoço.

Allan Woodcourt põe a mão no pulso dele e no peito.

— Respire, Jo.

— O ar sai tão pesado como uma carroça — diz Jo, que poderia acrescentar: "e também matraqueia como ela"; mas apenas murmura: — Vou-me mudar, meu senhor.

Allan procura por ali uma botica. Não vê nenhuma perto, mas uma taverna serve tanto quanto ela, se não melhor. Arranja um pouco de vinho e ministra ao garoto uma pequena porção dele, com todo o cuidado. O rapazinho começa a reviver logo que o líquido lhe passa pelos lábios.

— Podemos repetir esta dose, Jo — observa Allan, contemplando-o com o rosto atento. — Bom. Agora descansaremos uns cinco minutos e depois vamos continuar.

Deixando o menino sentado no banco da tasca, com as costas apoiadas numa grade de ferro, Allan fica andando de um lado para outro à luz do sol matinal, lançando de vez em quando um olhar para ele, sem dar a entender que o está vigiando. Não custa verificar que ele se sente aquecido e repousado. Se um rosto tão sombrio pode brilhar, pode-se dizer que sua face brilha um tanto, e pouco a pouco ele vai comendo o pedaço de pão que com tamanho desânimo havia posto de lado. Observando esses sinais de melhora, Allan trava conversa com ele e aos poucos vem a conhecer, com grande espanto seu, a aventura da dama do véu, com todas as suas consequências. Já vai mastigando lentamente, enquanto lentamente conta a aventura. Ao terminar sua história e seu pedaço de pão, continuam o caminho de novo.

Tencionando delegar sua dificuldade de descobrir uni refúgio temporário para o menino à sua antiga cliente, a zelosa Miss Flite, dirige-se Allan para o largo onde ele e Jo pela primeira vez se encontraram. Mas tudo está mudado na loja de trapos e garrafas. Miss Flite não mora mais lá. A loja está fechada e uma mulher de feições duras, bastante enegrecidas pela poeira, cuja idade é um problema, mas que não é outra senão a interessante Judy, mostra-se azeda e lacônica em suas respostas. Estas bastaram, porém, para informar o visitante de que Miss Flite e seus passarinhos estão alojados em casa de uma Sra. Blinder, em Bell Yard, e Allan parte para aquele vizinho lugar, onde Miss Flite (que se levanta cedo para ser pontual no Tribunal de Justiça, presidido pelo seu excelente amigo, o Chanceler) desce correndo as escadas, de braços abertos e com lágrimas de boas-vindas.

A Casa Soturna (1870)Onde histórias criam vida. Descubra agora