– Vocês não deviam estar aqui – Uma voz estranha, feminina, porém com ecos masculinos, soou no ambiente, vindo de frente. O quarteto olhou naquela direção, arregalando os olhos diante da figura que os encarava com tranquilidade.
Era uma mulher alta, muito magra, de pele clara, com olhos castanhos levemente amendoados e longos cabelos negros e lisos. Tinha um corpo bem-feito, coberto em partes estratégicas pelas vens que formavam o ambiente em que eles se encontravam. Ela os encarava com um leve sorriso, um brilho estranho nos olhos escuros que os fitavam sem piscar.
Os olhos da Morte viam a alma dos quatro seres diante dela. Um médico, uma dançarina de pole dance, uma empresária e um jogador de futebol. Quatro pessoas aparentemente mais diferentes, impossível, porém com laços inquebráveis, forjados na bigorna do Destino. Eles não sabiam, não conseguiam ver os elos que os uniam (somente depois saberiam), porém eram, cada um de sua forma, muito importantes nas vidas uns dos outros.
O Destino sabia o que fazia, embora muitas vezes usasse de linhas tortas para alcançar seus objetivos. Aquelas quatro almas não haviam sido escolhidas ao acaso.
Diante dos olhos muito antigos dela, estavam com clareza os fios cor de ouro rosê entre o médico e a dançarina. Fios muito recentes, começando a ser firmados. Porém, já fortes, impossíveis de serem totalmente destruídos. Flávia e Guilherme não faziam a menor ideia disso, mas estavam destinados a ficarem juntos há muitos séculos. Suas almas se buscavam, se procuravam, e, quando se encontravam, não conseguiam se afastar.
Isso era evidente no braço protetor do médico em torno da cintura esguia da garota, na força do aperto da mão dela na camisa dele. Mesmo sem se conhecerem, um reagia à proximidade do outro. Mesmo agora Flávia buscava em Guilherme apoio, amparo, firmeza, estabilidade – e encontrava. Guilherme tinha em sua essência a incrível capacidade de amar incondicionalmente, sem vacilar em sua convicção, e era exatamente disso que Flávia precisava, exatamente isso o que Flávia buscava.
Já Guilherme – que era desesperadamente inseguro na vida pessoal devido à criação recebida pelos pais – encontrava em Flávia o amor pleno, inquestionável, leal, total. A garota, por mais passível que fosse de entrar em roubadas, tinha o coração mais dedicado às pessoas que ela amava. Nunca tinha vivido um grande amor até aquele momento, até porque seu coração buscava o de Guilherme para se ligar. Agora que tinham se encontrado, nunca mais se separariam.
A verdade era que Flávia e Guilherme, a princípio, teriam um longo, tortuoso e sofrido caminho à frente deles, até a felicidade máxima, vivendo o casamento feliz e tendo a família linda que estava destinada para eles. A princípio, que fique bem claro. O médico havia mudado todo o seu destino sofrido ao decidir, sem qualquer influência do Destino e da Morte, sair da infeliz união cujos únicos propósitos eram gerar a promissora vida a quem Guilherme chamava de filho e mostrar ao médico tudo que ele não queria para si.
Agora, o caminho de Flávia e Guilherme se estendia diante deles, longo como sempre, porém menos tortuoso e mais cheio de felicidade do que antes. Lógico que teriam problemas, como toda história – pois é necessário sofrer para valorizar a felicidade alcançada –, mas, pelo menos na jornada deles, Rose não seria um obstáculo.
O mesmo não se podia dizer do outro casal daquele quarteto.
Se Flávia e Guilherme eram almas gêmeas desde o começo dos tempos, Paula e Luca eram almas cuja afinidade se fortalecia a cada existência. Naquela em específico, Paula precisaria da força do caráter de Luca para neutralizar o veneno da própria ambição desenfreada, e da dedicação canina do jogador à família para lhe ensinar a ser uma mãe melhor, uma filha melhor, uma pessoa melhor.
Já Luca precisaria da férrea determinação e do coração inegavelmente leal de Paula para ajudá-lo a superar todos os obstáculos colocados pelo Destino em seu caminho. Especificamente, os que envolviam a existência de Rose e de todas as situações mal-resolvidas envolvendo a modelo e o passado dos dois. Além da doença da filha mais nova do atleta.
Mas as probabilidades de Paula e Luca eram cheias de potencial. Caso eles conseguissem superar todos os seus entraves, tinham uma história tão linda quanto a de Flávia e Guilherme para viver, e igualmente feliz e cheia de realizações, inegavelmente interligada à do outro casal.
Até porque existiam laços unindo Luca a Guilherme e Paula a Flávia.
Os fios que ligavam Luca a Guilherme eram azuis-esverdeados, cor da medicina. Isso porque o destino de Guilherme era salvar Bianca, a filha caçula do jogador, e realizar o transplante que ela desesperadamente precisaria para recuperar a saúde. Em outras existências, outros eram os laços que uniam o médico ao atleta (em uma delas, Guilherme era o pai de criação do filho biológico de Luca), mas, nesta, eles seriam amigos, aliados e parceiros.
Já a corrente entre Paula e Flávia era formada de uma luz tão pura que era quase branca. Eram almas irmãs desde o começo dos tempos, destinadas a sempre serem da mesma família. Naquela existência, em especial, eram mãe e filha, embora ambas desconhecessem o parentesco. Paula havia abandonado a filha recém-nascida aos cuidados do pai emocionalmente frágil e, embora tivesse retornado para tentar recuperar a guarda da criança, havia sido impedida de exercer a sua maternidade devido a uma mentira cruel.
O caminho delas duas seria mais difícil do que de Luca e Guilherme, especificamente por causa das cicatrizes deixadas em Flávia devido ao abandono materno. Paula sofreria muito até conquistar o amor da filha. Porém, até nisso Luca e Guilherme seriam essenciais. Principalmente se Luca conseguisse se manter ao lado de Paula (pois, mesmo com poucos minutos, já era visível que Guilherme não se afastaria de Flávia se pudesse evitar), ele teria importância vital para ajudar a reparar essa ligação.
Além disso, haviam vidas à espera. Vidas que a rodeavam naquele momento, observando com olhinhos brilhantes aqueles que estavam destinados a serem seus pais. Uma menina linda e esperta, de cabelos negros e lisos, pele muito clara, os olhos castanhos e gentis do médico e a boca bem-feita e carnuda da dançarina, muito inteligente e de voz muito afinada. Um garoto de olhos castanhos cor de mel e cabelos lisos e aloirados, nariz reto e queixo empinado, com tino para os negócios e talento esportivo. As duas crianças, invisíveis a olhos mundanos, absorviam com avidez cada detalhe daquele inesperado quarteto.
A Morte disfarçou um sorriso indulgente e fixou novamente os olhos muito escuros nos quatro humanos à sua frente. Por um momento, pensou em não os colocar naquele caminho. Talvez o susto bastaria?
A mão fria e delicada do Destino roçou os cabelos negros e esvoaçantes da irmã Morte. Ouviu a voz baixa e sussurrante de seu companheiro de existência:
– Se eles não seguirem essa jornada, todos os planos e projetos montados para eles e os outros que deles dependem jamais irão se realizar. Entre eles, as crianças.
Morte sufocou a vontade de suspirar.
– Vocês não deviam estar aqui – repetiu, e pela primeira vez em muitos séculos desejou que alguns humanos conseguissem reverter suas trajetórias e mudar seus destinos.
c o n t i n u a
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everything has changed
RomantizmUm acidente de avião e um inesperado acontecimento mudam a vida de um médico, uma dançarina de pole dance, uma empresária e um jogador de futebol. Ou: Como seria a novela se Guilherme já estivesse divorciado no começo da história?