Capítulo 2

828 135 435
                                    



𝔒𝔰 machucados menores e arranhões foram curados, mas os maiores não. Minhas costas continuavam rasgadas com curativos enormes, porém por baixo deles estava tudo em frangalhos.

Meu rosto do lado esquerdo onde fora atingido pelo chicote, ainda estava com a ferida em aberto, uma faixa passava por minha cabeça e o cobria.

Todo o meu corpo possuía as mais diversas cicatrizes. Desde aquele dia não usava mais roupas curtas ou que mostravam a pele, até mesmo minhas mãos viviam em luvas de couro preto. Ficavam apenas meu pescoço e rosto à mostra, às vezes nem o pescoço.

Depois de curada, a face esquerda ficou marcada por uma horrível cicatriz que se iniciava no topo da testa, cortava a sobrancelha e a pálpebra do único olho castanho - como os de uma corça - e findava em meu maxilar.

Uma das coisas que sempre chamaram atenção em mim são os meus olhos, o direito azul-acinzentado e o esquerdo castanho. A mistura perfeita de minhas irmãs mais velhas, como dizia meu finado pai.

Não lembrava do que aconteceu direito depois de sair do objeto milenar, tudo era um borrão em minhas memórias, e sinceramente? Era melhor assim, seria melhor ainda se não me lembrasse de nada, mas só de conseguir me lembrar de pouca coisa ajudava.


Após terminar de preparar o chocolate quente, desligo o fogão e despejo devagar o conhaque, sempre mexendo do para não talhar; pego minha xícara preferida - que inclusive já estava toda remendada e lascada - e despejo o líquido quente ali, pondo direto na xícara um pouquinho a mais do álcool.

Refaço todo o caminho anterior e sento-me na cadeira de descanso na varanda da cabine. Não percebo as horas passarem, estava completamente imersa em pensamentos; só recobro a consciência com o piado de um pássaro.

Franzindo o cenho apoio a xícara no chão e ando até a ave que estava sentada no parapeito. Havia um pequeno papel amarrado nos pés negros, suas penas eram preta-acinzentadas, o bico de um vermelho escuro já muito bem conhecido por mim.

Black bird.

O pássaro mensageiro utilizado por mim e minha tripulação para passar recados importantes entre nós. Algo interessante deve ter acontecido no continente para Alice - minha melhor amiga e co-capitã de meu navio - mandar Black bird, já que era ela quem havia ficado com ele por último.

Afago as penas do pássaro e pego o papel, com cuidado e desdobro-o para ler. Presto atenção em cada detalhe da mensagem, ordenando a minha mente para que focalizasse as letras que teimavam em saltitar, maldita dislexia.

Ninguém sabia que eu o possuía, era uma coisa difícil de se esconder, - principalmente da minha família- mas, impressionantemente, eu fiz isso com perfeição durante toda a minha vida. E depois de ganhar e aprender a usar um de meus poderes vindos do caldeirão, a apatia me ajudou, tornando minha omissão mais fácil de ser feita.

A carta de Alice dizia a seguinte mensagem:

" 𝓸𝓵𝓪́ 𝓿𝓪𝓭𝓲𝓪, 𝓼𝓮𝓷𝓽𝓲𝓾 𝓶𝓲𝓷𝓱𝓪 𝓯𝓪𝓵𝓽𝓪? 𝓐𝓬𝓱𝓸 𝓫𝓸𝓶 𝓺𝓾𝓮 𝓽𝓮𝓷𝓱𝓪.

𝓔𝓷𝓯𝓲𝓶, 𝓮𝓼𝓽𝓸𝓾 𝓮𝓼𝓬𝓻𝓮𝓿𝓮𝓷𝓭𝓸 𝓹𝓪𝓻𝓪 𝓲𝓷𝓯𝓸𝓻𝓶𝓪́-𝓵𝓪 𝓭𝓸𝓼 𝓪𝓬𝓸𝓷𝓽𝓮𝓬𝓲𝓶𝓮𝓷𝓽𝓸𝓼 𝓮𝓼𝓽𝓻𝓪𝓷𝓱𝓸𝓼 𝓺𝓾𝓮 𝓮𝓼𝓽𝓪̃𝓸 𝓪𝓬𝓸𝓷𝓽𝓮𝓬𝓮𝓷𝓭𝓸 𝓪𝓺𝓾𝓲 𝓹𝓸𝓻 𝓟𝓻𝔂𝓽𝓱𝓲𝓪𝓷.

𝓥𝓸𝓾 𝓽𝓮𝓷𝓽𝓪𝓻 𝓼𝓮𝓻 𝓸 𝓶𝓪𝓲𝓼 𝓫𝓻𝓮𝓿𝓮 𝓹𝓸𝓼𝓼𝓲́𝓿𝓮𝓵, 𝓹𝓸𝓲𝓼 𝓷𝓪̃𝓸 𝓽𝓮𝓷𝓱𝓸 𝓶𝓾𝓲𝓽𝓸 𝓽𝓮𝓶𝓹𝓸. 𝓑𝓪𝓼𝓲𝓬𝓪𝓶𝓮𝓷𝓽𝓮, 𝓪𝓵𝓰𝓾𝓶𝓪 𝓶𝓮𝓻𝓭𝓪 𝓰𝓻𝓪𝓷𝓭𝓮 𝓮𝓼𝓽𝓪́ 𝓪𝓬𝓸𝓷𝓽𝓮𝓬𝓮𝓷𝓭𝓸 𝓹𝓸𝓻 𝓪𝓺𝓾𝓲, 𝓼𝓮́𝓻𝓲𝓸!

𝓕𝓮𝓮́𝓻𝓲𝓬𝓸𝓼 𝓿𝓮𝓮𝓶 𝓶𝓸𝓻𝓻𝓮𝓷𝓭𝓸 𝓮𝓶 𝓰𝓻𝓪𝓷𝓭𝓮 𝓺𝓾𝓪𝓷𝓽𝓲𝓭𝓪𝓭𝓮 𝓮𝓶 𝓣𝓞𝓓𝓐𝓢 𝓪𝓼 𝓒𝓸𝓻𝓽𝓮𝓼, 𝓼𝓮𝓾𝓼 𝓬𝓸𝓻𝓹𝓸𝓼 𝓹𝓪𝓻𝓮𝓬𝓮𝓶 𝓬𝓪𝓼𝓬𝓪𝓼 𝓿𝓪𝔃𝓲𝓪𝓼 𝓮 𝓼𝓮𝓶 𝓼𝓪𝓷𝓰𝓾𝓮.
𝓞 𝓶𝓪𝓲𝓼 𝓫𝓲𝔃𝓪𝓻𝓻𝓸 𝓭𝓮 𝓽𝓾𝓭𝓸 𝓲𝓼𝓼𝓸 𝓮́ 𝓺𝓾𝓮, 𝓪𝓵𝓮́𝓶 𝓭𝓮 𝓽𝓮𝓻𝓮𝓶 𝓸 𝓼𝓪𝓷𝓰𝓾𝓮 𝓭𝓻𝓮𝓷𝓪𝓭𝓸, 𝓸𝓼 𝓸𝓵𝓱𝓸𝓼 𝓮 𝓵𝓲́𝓷𝓰𝓾𝓪𝓼 𝓽𝓪𝓶𝓫𝓮́𝓶 𝓮𝓼𝓽𝓪̃𝓸 𝓯𝓪𝓵𝓽𝓪𝓷𝓭𝓸.

𝓢𝓮𝓻𝓲𝓪 𝓶𝓾𝓲𝓽𝓸 𝓫𝓸𝓶 𝓼𝓮 𝓿𝓸𝓬𝓮̂ 𝓮 𝓼𝓮𝓾𝓼 𝓹𝓸𝓭𝓮𝓻𝓮𝓼 𝓮𝓼𝓺𝓾𝓲𝓼𝓲𝓽𝓸𝓼 𝓿𝓲𝓮𝓼𝓼𝓮𝓶 𝓪𝓺𝓾𝓲 𝓭𝓪𝓻 𝓾𝓶𝓪 𝓸𝓵𝓱𝓪𝓭𝓲𝓷𝓱𝓪.

𝓑𝓮𝓲𝓳𝓲𝓷𝓱𝓸𝓼 𝓭𝓮 𝓵𝓾𝔃 𝓭𝓪 𝓼𝓾𝓪 𝓵𝓲𝓷𝓭𝓪 𝓮 𝓶𝓪𝓻𝓪𝓿𝓲𝓵𝓱𝓸𝓼𝓪 𝓪𝓶𝓲𝓰𝓪,
𝓐𝓵𝓲𝓬𝓮 𝓢𝓸́𝓵𝓲𝓼."

Suspiro ao terminar de ler a carta. As informações sendo rapidamente processadas por meu cérebro. Droga. Aquelas criaturas conseguiram chegar a Prythian.

Quando eu, juntamente de dois membros da tripulação, fomos a Rask.Os moradores não paravam de comentar sobre criaturas esguias com mais de dois metros e de aparência carbonizada. Nós tentamos procurar por elas, mas a única coisa achada foram corpos, iguais à descrição de Alice.

Como não achamos as criaturas, voltamos para o navio e não voltamos a falar disso, até porque não houve mais casos notíciados, pelo menos até agora. E dessa vez no outro lado do mundo.

Mordo o lábio inferior em um gesto nervoso e desço para o convés, iço as velas e levanto a âncora. Volto para a cabine de comando e ajusto o leme e viro o timão para o sul. Depois de uma década, finalmente estava voltando para Prythian.

Para o lar de minhas irmãs.

𝓒𝓸𝓻𝓽𝓮 𝓭𝓮 𝓣𝓮𝓶𝓹𝓮𝓼𝓽𝓪𝓭𝓮𝓼 𝓮 𝓝𝓪𝓾𝓯𝓻𝓪́𝓰𝓲𝓸𝓼 - 𝕃𝕚𝕧𝕣𝕠 𝟙Onde histórias criam vida. Descubra agora