capítulo 4

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O cenário à minha volta era turvo e desfocado. A sensação era familiar, mas minha cabeça não entendia o que estava acontecendo. Eu estava em uma sala fria sem janelas ou portas. Era como uma grande geladeira. No instante em que pensei nisso, as paredes se tornaram escorregadias de gelo, o chão também. Tudo se cobriu de gelo. Comecei a bater os dentes com tanta força que eles doíam. E então um cheiro de almíscar me envolveu. Como um abraço de Jeff. E logo Jeff estava ali, me abraçando. A sala de gelo desapareceu, substituída por um campo verde e infinito. Estávamos abraçados no meio do cenário. — Eu também sempre gostei de você — ele cochichou. — Não sei por que demoramos tanto para admitir isso. — Porque eu tinha medo — falei. — De quê? Do que eu tinha medo? De deixar alguém se aproximar? De dar a ele o poder de me magoar? De abrir mão do controle? Possibilidades não doíam tanto quanto realidades. Possibilidades são empolgantes e infinitas. Realidades são definitivas. Isso sempre me fez hesitar com Jeff, pensar que, se eu contasse o que sentia e ele não correspondesse, isso seria o fim. Não haveria mais "e se", nem "pode ser", não haveria mais sonho. Sonho. Era isso. Só um sonho. Tudo era só um sonho. Eu precisava acordar agora. Abri os olhos. O sol entrava pelas janelas de cima, iluminando a sala. A decepção era um peso em meu peito. Eu podia estar sonhando, mas estar

presa na biblioteca não havia sido um sonho. Eu ainda estava ali. Ainda estava presa. Com Dax. Ele não estava mais deitado no chão. Para onde tinha ido? Sentei depressa e vi pontos pretos, e senti o saco de dormir escorregar de cima dos meus ombros quando me endireitei. O saco de dormir de Dax. Ele o tinha posto em cima de mim. Deixei o saco de dormir cair no chão e fiquei olhando para ele ali caído, inútil. E, imediatamente, senti falta do calor. Eram oito da manhã e meu estômago doía de fome. Ninguém tinha ido me procurar. — Ficou ofendida com o saco de dormir? Soltei um gritinho. Dax estava sentado em uma poltrona do outro lado da sala, com as pernas estendidas para a frente e cruzadas nos tornozelos. Vestia jeans e camiseta preta de mangas compridas. O cabelo escuro e úmido ia ficando mais ondulado à medida que secava. Havia uma sombra de barba em seu queixo. Ele segurava um livro aberto contra o peito. A posição em que estava sentado, com um ombro bem mais baixo que o outro, as sombras brincando em seu rosto e criando formas escuras, o contraste do livro vermelho contra a camisa preta... alguma coisa me fez lamentar não ter minha câmera. — Você não devia se aproximar de uma garota desse jeito. — Eu nem me mexi. — Eu sei. Falei brincando. Só não tinha te visto aí. Obrigada pelo saco de dormir. — Um arrepio me fez estremecer, revelando que eu ainda precisava dele. — Eu... preciso ir ao banheiro. — Não precisa me avisar. — Só estava dizendo, tudo bem?— Levantei, abaixei a perna esquerda da calça, que havia subido durante a noite, e fui ao banheiro. O assento do vaso estava frio, e o espelho mostrou que eu estava pior do que imaginava. O rímel borrado dos dois lados do rosto fazia os olhos cor de âmbar parecerem mais escuros do que eram. O cabelo, que no dia anterior tinha

ondas perfeitas, agora estava todo embaraçado, e três dias sem limpar a pele provocariam a pior explosão de acne do planeta. Abri a torneira e fiz o possível para limpar o rímel borrado, depois enxaguei a boca. Ajeitei o cabelo com os dedos até ficar aceitável. Ainda sentia o pescoço dolorido por causa da posição desconfortável em que havia dormido, e meu estômago ficaria bem chateado se eu não encontrasse comida em algum momento do dia. Estava brava comigo por ter adormecido na noite anterior antes de pôr em prática o plano para achar o telefone de Dax. Por que ele dificultava tanto essa situação? Aliás, por que ele não queria que as pessoas soubessem onde nós estávamos? Será que estava envolvido em alguma confusão com a lei... de novo? O que tinha feito dessa vez? Eu nem sabia o motivo da primeira confusão. Havia boatos de que ele tinha dado uma surra em um cara. Não me surpreenderia, se isso fosse verdade. Senti outro arrepio. Ontem à noite estava muito empolgada com minha roupa — camiseta verde e solta, jaqueta estruturada e jeans. Mas senti calor quando fazíamos o trabalho na biblioteca. Muito calor, na verdade. Pela centésima vez, agora me arrependia de ter tirado a jaqueta e guardado na bolsa. E de tê-la deixado no porta-malas do carro do Jeff. Minha bolsa. Se ela estivesse comigo, tudo isso já teria acabado. Mesmo sem o celular, eu teria tudo de que precisava para passar o fim de semana. Devia ter comida em algum lugar por ali. As bibliotecárias precisavam almoçar. Uma sala de descanso, talvez? No terceiro andar, encontrei o que procurava: a cozinha. Não só havia uma geladeira, como duas máquinas de venda, uma de refrigerantes, outra de lanches. Era bem cruel ver toda aquela comida ali sem ter como pegar nada. Chutei a máquina de refrigerante quando passei por ela, pensei em tentar pegar um pela fresta larga na parte de baixo, mas logo desisti da ideia. Uma vez li uma história na internet sobre um homem que teve que ser resgatado pelo corpo de bombeiros porque ficou com o braço preso em uma máquina dessas. A geladeira, diferente de todo o restante na biblioteca, não estava trancada. Era bem grande, do tipo industrial. Tinha quase esquecido que as

pessoas fazem casamentos e eventos na biblioteca. Era um prédio enorme e lindo que agora havia se tornado minha prisão. Cruzei os dedos e abri uma das portas. Na prateleira do meio tinha um pedaço de bolo recheado. Eu não sabia nem por que alguém guardaria um pedaço tão pequeno. Mas o comeria, agradecida, mais tarde. Abri a segunda porta da geladeira prateada e encontrei um pote transparente com sei lá o que, mas vi que havia manchas escuras de mofo nas laterais dele. Ao lado, havia dois sacos de papel. Peguei o primeiro e vi que alguém tinha escrito "NÃO COMA A MINHA COMIDA" com caneta permanente. Abri o saquinho e olhei dentro dele. Uma maçã e um iogurte vencido há uma semana. Considerando o aviso do lado de fora, eu esperava alguma coisa mais digna de ser roubada. Peguei a maçã e deixei o iogurte para mais tarde. Na outra sacola, tinha mais um pote e uma lata de refrigerante. Peguei o pote de plástico e abri bem devagar. Não vi sinais de mofo, mas também não consegui identificar o conteúdo. Massa? Vegetais? Cheirar não ajudou. Isso podia esperar. Peguei o refrigerante e deixei as outras coisas. Encontrei xícaras de café no armário e dividi o refrigerante em duas delas. As gavetas não continham utensílios de verdade, mas achei uma faca de plástico. E a quebrei quando tentei cortar a maçã ao meio. Comeria a metade e torceria para Dax não ser germófobo. Lavei a maçã em água morna, depois a mordi. Nada jamais teve gosto melhor. Encontrei guardanapos em uma gaveta, e, depois que comi minha parte, embrulhei a outra metade, peguei as xícaras e desci a escada para encarar Dax de novo. Se conseguisse conquistar a confiança dele, não teria que vasculhar sua bolsa. Ele me emprestaria o celular. Ele vai me emprestar. Eu era legal. As pessoas gostavam de mim. Dax tamb gostaria.

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