capítulo 14

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Demorou pelo menos mais uma hora para a mãozinha grudenta do Dax cair, e a minha despencar, alguns minutos mais tarde. Àquela altura, minhas mãos estavam entorpecidas, e os pulmões, gelados. O queixo tremia, fazendo os dentes vibrarem. Peguei as duas mãozinhas quando elas caíram no chão e voltei à sala principal da biblioteca. Lá não estava muito mais quente. — Eu g... ganhei — gaguejei para Dax, que estava lendo, depois caí na poltrona mais próxima e joguei os dois brinquedos em cima da mesa. — Tomou na cara. Ele sorriu. — O discurso da vitória está melhorando. — Ele estava embrulhado no saco de dormir, mas o tirou de cima do corpo e ofereceu para mim. Não me mexi, e ele se levantou e se aproximou. — Valeu a pena? — perguntou, jogando o saco de dormir no meu colo. — Depende da sua verdade. — Ah, é. Qual é a pergunta? — E voltou à cadeira. Qual era a pergunta? Não foi por isso que fiquei tanto tempo esperando naquele corredor gelado? Eu realmente queria saber outra verdade dele. Havia muitas perguntas que eu podia fazer. Como resumir tudo em uma só? — Não sou tão interessante — ele disse quando continuei em silêncio. — Só um mistério — respondi, e ele riu. Eu gostava muito dessa risada. — Como assim?

— Está sempre sozinho, desaparece na hora do almoço, nunca fala, nem na aula, e não parece se incomodar com o que pensam de você. — E eu que achei que você não prestava atenção. — É difícil te ignorar. — Quando percebi o que ele podia estar pensando, acrescentei: — Todo mundo está sempre falando sobre você. — Eu estava indo de mal a pior. Parei enquanto podia. — Sei. E aí, tem uma pergunta no meio disso tudo? — Onde os seus pais estão? Quando ele reagiu como se tivesse sofrido um golpe, me senti a pessoa mais insensível do mundo. De onde eu tirei a ideia de que tinha o direito de fazer esse tipo de pergunta, mesmo que agora estivéssemos no mesmo time? — Não precisa responder. Vou pensar em outra pergunta. — Meu pai é fisicamente ausente e minha mãe é mentalmente ausente. Eu devia parecer confusa, porque ele esclareceu: — Meu pai foi embora de casa quando eu era pequeno e minha mãe é viciada em drogas. — Sinto muito. — Relaxa. Já falei, estou bem. Minha situação é realmente boa. E ano que vem vou estar oficialmente livre do sistema todo. Ele não tinha ninguém. Ninguém com quem pudesse contar quando tivesse problemas, ninguém para ajudar, se desse um mau passo ou se perdesse. Era completamente sozinho. As lágrimas que eu tentava segurar faziam meus olhos arderem. Ele suspirou. — Não me atribua emoções. Não finja que sabe o que estou pensando com base nas suas experiências. Fiz um esforço ainda maior para controlar minha expressão. Eu precisava acreditar no que ele dizia. Dax afirmava que estava bem. Devia estar bem. Eu imaginava nele emoções baseadas no meu universo, não no dele.

— Desculpa. — Não precisa se desculpar. — Ele pegou o livro e voltou a ler.

Passaram-se horas. Eu estava enrolada no saco de dormir e meus dentes não paravam de bater. Imaginei ser pela falta de comida. Será que meu corpo precisava de alimento para se aquecer? Onde eu estava com a cabeça quando decidi ficar tanto tempo em uma passarela gelada? Dax parecia não sentir frio nenhum ali sentado, lendo seu livro. — D... Dax. — Minha garganta doía. — Oi? — Quais são os sintomas de hipotermia? Porque não sinto mais meus dedos. Ele olhou para mim, depois para o livro de novo. — Vai correr na escada ou alguma coisa assim. — Correr na escada... — Ele estava certo. Eu só precisava ajudar o sangue a circular. Levantei e comecei a andar em direção à escada. Inúmeras estrelinhas surgiram no meu campo de visão por alguns instantes e fiquei tonta. Mas mantive o equilíbrio e continuei andando. O corredor estava escuro, o sol já se escondia no horizonte. Eu havia passado mais um dia inteiro na biblioteca. Faltava só mais um. E duas noites... Por que parecia uma eternidade? Comecei a subir devagar, um degrau de cada vez. Quando recuperei a sensibilidade nos membros, acelerei um pouco. Minha mente começou a vagar. Estava com saudade dos amigos. Do Jeff em especial. Ele me fazia rir. Na semana passada, ele entrou na sala do anuário, onde eu organizava as páginas dos clubes no computador. Ele se sentou lá, olhou para a página em que eu tinha trabalhado durante a última meia hora e disse: — Perfeita; agora vamos. — Tem certeza? Não sei se ficou muito boa.

Ele mal olhou para a tela. — Todas as fotos que você faz são incríveis. Agora vem comigo. — E me puxou pelo braço para fora da sala. — Tenho que salvar o arquivo. — Alguém faz isso por você. Precisa me levar até a sala dos professores e comprar um refrigerante para mim. — Não podemos entrar na sala dos professores. Ele parou na frente da porta. — Eu não posso entrar. Mas você, pelo jeito, entra onde quiser. Os professores te adoram. Se estiver do meu lado, posso fazer qualquer coisa. — Não vou entrar na sala dos professores. Ele riu e bateu na porta. Meu coração disparou. A vice-diretora atendeu. — Pois não? — A Autumn quer um refrigerante — ele disse. — Não, eu... — comecei, sentindo a garganta apertar. — Espere um minuto. — Ela fechou a porta, e eu olhei para Jeff. — Está tentando criar problema para mim? — Relaxa. Não vai ter problema. Ele estava certo. Ela voltou um minuto depois com uma Coca. Quando fechou a porta de novo, eu ri. — Viu? Os professores te amam. — Ah, fala sério. Você escreveu o livro sobre como encantar os professores. É evidente. Ele sorriu. Meu pé de meia escorregou no degrau, me arrancando da lembrança e quase me jogando no chão. Segurei o corrimão e evitei o tombo. Meu estômago roncou, e pensei que a atividade física poderia me aquecer, mas me faria sentir mais fome. Fui até a cozinha e decidi que o prato misterioso tinha que ser aquecido e provado. Só tinha comido meia barra de proteína o dia todo, e isso fazia horas.

Levei um tempo para decifrar o micro-ondas. Esquentei a comida um pouco mais que o necessário, torcendo para que isso matasse as bactérias que talvez se proliferassem naquele alimento havia muito preparado. Tentei não pensar nisso quando levei uma pequena porção à boca. Tinha gosto de macarrão ao molho marinara e era muito bom. Eu não sabia se era porque não comia nada de verdade fazia tempo ou se era realmente bom, mas comi mais um pouco. Comi exatamente a metade e deixei a outra parte para Dax. — Desbravou o desconhecido? — ele perguntou, aceitando o pote e olhando para a comida como se não se sentisse confiante para fazer a mesma coisa. Cheirou o macarrão. — Está bom. Eu comi. A comida e o exercício surtiram efeito, e meu queixo finalmente parou de tremer. Dax deixou o livro de lado e comeu um pouco. — O que acha que é? — perguntei. — Macarrão? Um macarrão supervelho. — Achei o gosto bom. Provavelmente porque estou com fome. Ele comeu mais um pouco, depois me ofereceu o pote. — Pode comer. Não gostei. — Sério? Agora é crítico de gastronomia? — Sim. E isso é horrível. Peguei a massa, e só depois de comer duas grandes garfadas, entendi o que ele havia feito. Será que fingiu que não tinha gostado só para eu poder comer tudo? Porque a comida não era horrível. Eu não tinha certeza de uma coisa nem de outra. Não parecia algo que Dax faria, mas ele também não era como eu havia pensado. — Já foi naquele restaurante italiano na Center? Gloria's ou alguma coisa assim? — perguntei. — Não. — Por que não gosta de comida italiana? — Não é minha favorita.

Hum. Talvez ele não tivesse gostado, mesmo. Terminei de comer e deixei de lado o pote vazio. — Devia fazer seu trabalho de história enquanto está aqui. Terminamos o nosso sexta-feira. — É. Boa ideia. Eu sabia que era a última coisa que ele faria. Queria saber como eram suas notas. Ele faltava tanto que não podia ir bem. — Posso te ajudar, se quiser. — Quero. Vai começando. Eu chego em duas horas. Chutei o pé dele e sorri. — Engraçadinho. Eu me aproximei da pilha de livros que tinha jogado nele na primeira noite. Alguns estavam abertos e virados para baixo, com as páginas dobradas. Peguei um a um, fui alisando as páginas e formando uma pilha organizada. Depois levei todos para um carrinho no fim de um corredor. Já havia vários livros no carrinho esperando para serem guardados. Livros com títulos como: Dez passos para a reabilitação, Hábitos de um adicto, Neuroquímica e dependência. Não eram necessariamente os livros escolhidos por Dax, podiam ter sido lidos por qualquer pessoa, mas ele também estava aqui na sexta-feira, é claro, esperando a biblioteca fechar. Era essa a pesquisa que fazia, em vez de terminar o trabalho do sr. Garcia? Ele não quer sua piedade, disse a mim mesma. — Estou me arrumando para ir dormir — avisei e me dirigi ao banheiro, onde ele agora deixava todos os produtos que tinha levado na bolsa. Terminei de me preparar sem pressa e me enfiei no saco de dormir.

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