Capítulo 1.4

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As sirenes estavam a alguns quarteirões agora. As luzes do giroflex dançavam entre as ruas do morro, refletindo em janelas rachadas e tijolos expostos. Apenas um carro de patrulha, no entretanto. A maioria dos habitantes daquele bairro sabia dizer só pelas luzes. Na verdade, era o mesmo que costumava passar por ali para buscar bêbados e fanfarrões das altas horas.

Mas nenhuma sirene de resgate podia ser ouvida.

Algum menor de idade responsabilizado de alertar sobre os policiais que subissem o morro disparou três vezes para cima, como um sinal. Janelas enferrujadas fizeram uma sinfonia enquanto se fechavam em todo o redor deles, luzes sumiram abruptamente por trás das cortinas. O sinal era universal, e por fazer os policiais subirem o morro a essa hora, alguém iria pagar.

Na rua mal asfaltada, o menino esticou os dedinhos curtos e finalmente sentiu a alça da maleta, num golpe rápido se jogou para frente para alcançá-la e fechar a mão por sobre ela. Pequenos pedaços de sua bochecha pareceram borbulhar quando encostaram no teto ardente, o garoto grunhiu. Sally exclamou, finalmente cedendo à pressão causada pelas sirenes, pelo que disse e por medo de Mama. Não exatamente por que se importava com o garoto.

Quase quando chegava nele, finalmente a mãozinha puxou a maleta com um tranco que a mandou voando pelo ar e ele recuou o máximo que pode de costas, esbarrando nela.

Gritava e esperneava como se ele mesmo estivesse pegando fogo, rolando no barro. Existe algo nos lamentos de dor de uma criança que simplesmente acerta seu coração como nada mais é capaz. Sally podia ser o que fosse, mas também era humana, mesmo debaixo de toda aquela maquiagem e plásticas clandestinas.

Ela tentou o acalmar, mas suas mãos eram quase mais fortes que as dela, e apertavam a mãozinha em carne viva contra a bochecha exposta.

– Que merda garoto, qual seu problema?

Ela tentou, mas ele mal a escutava, ainda brigando com a realidade dolorosa e a beira do desmaio. Sally, em desespero, olhou para trás, na direção de Mama.

Ela a encarava com um sorriso satisfeito. E foi só o que ela precisou.

– Você! Seu...monstro! – Entre suas palavras o menino berrava – E você sabe disso, todo mundo sabe. Mas uma criança? A porra de uma criança? Que caralhos tem errado com você?

Mas o sorriso permaneceu.

Sally, soube naquele instante, era hora de ir. Então deixou de tentar segurar o menino, levantou e se pôs a subir o morro sem nenhuma outra palavra. A loira falsa trumbicou o mesmo caminho que Marta fizera, pisando em duas poças no caminho e sujando também a meia calça branca desfiada. Subiria, faria a mala e iria embora.

Mama nem a olhou, agora o garoto ocupava cada milímetro de sua pupila dilatada. E ele não decepcionou seu sorriso satisfeito.

Com as mãos na bochecha, ele lutou com a dor e se levantou o suficiente para cambalear até onde o borrão que era a maleta estava e cair mais ou menos naquela direção após o primeiro passo. Era o suficiente para ela.

Quando recobrou a consciência, quase não ouviu o que ela disse.

Olhou em volta e captou um relance de uma forma preta presa ao cinto do passageiro, mal podia enxergar devido a dor quando escutou a voz da mulher por trás dele, mais clara agora. Ele tombou a cabeça na direção dela.

Tinha a maleta aos seus pés, mantendo o olhar fixo nele. Mesmo com o rosto escondido debaixo do guarda-chuva, ela parecia sorrir. Ele não sabia ainda, mas não era comum encontrar qualquer expressão desse tipo no rosto de Mama. Ele tentou olhar feio para ela, uma ameaça silenciosa.

– O que? Isto?

Ele rosnou, literalmente, era tudo que seu corpo permitia. Ele entregou seu tudo, e Mama riu.

– Então venha tomá-la de mim. – Ela se inclinou, ainda se protegendo da chuva. As sirenes soavam dentro da sua cabeça agora, talvez a uma ou duas ruas de distância.

– Garoto. – Ela levantou o guarda-chuva para que ele a olhasse nos olhos – Você me mataria por isso?

Uma criança de 6 anos não deveria ser capaz de dar esse tipo de olhar. Não deveria saber o significado desse tipo de emoção. Mas ela viu, dentro do olhar dele.

Ele iria.

– Venha. – Ela oferecia ajuda, mas não se importaria se fosse estúpido o suficiente para ficar parado ali quando chegassem as viaturas. Significaria que não valeria o esforço.

Surpreendentemente para ela, esse tom de voz ele conhecia muito bem. Ele levantou usando apenas um braço e pôs-se a marchar para a mulher, cambaleando pela visão que girava enquanto tentava manter a pele do rosto ainda colada no lugar.

Não o fazia por confiança ou lealdade, mas por que ela possuía a maleta e isso era tudo que importava.

Mama sorria abertamente.

Sangue de Moleque - KorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora