Capítulo 6.2

7 1 0
                                    


Esse e outros pensamentos extremamente estúpidos passaram pela cabeça do garoto até que, quando se viu virando a esquina da casa de Lívia, não notou o quanto tremia. Achou que toda aquela situação lhe faria um homem, que tirar a vida de alguém o faria mais do que era. Que preencheria o vazio que sentia. Era só o que conseguia pensar.

Evitava olhar para trás, temendo ver Lívia.

A chuva caia de frente com ele novamente, e batia forte contra seus cílios. Olhando morro acima conseguia ver muitas outras casas, pontinhos de luz vazando pelas janelas.

Quantas delas não estavam infestadas com os mesmos do tipo de Rogério. Pensou estar fazendo um favor aquela comunidade.

Quantos desses lares não tem um monstro fora do guarda roupa. Ao invés de debaixo da cama, no quarto ao lado, batendo numa mãe de família.

Tinha chegado ao beco onde ficava a casa de Lívia. Bateu à porta. Não chamou nomes, o tom diria que era urgente.

Cada segundo de espera significava uma eternidade.

Ninguém a abriu, então bateu novamente. Não era hora de amarelar.

A maçaneta virou com força o assustando. Ethan se jogou de costas contra a parede sem tinta ao lado da porta. Respirava como um coelho, o coração corria voltas em torno do peito, segurava com as duas mãos a arma que engatilhou.

Apontou-a na altura que esperava que a cabeça gorda de Rogério fosse aparecer. Conseguia ver as balas no tambor, acima do seu punho.

A porta se abriu.

— Canalha! – gritou.

A porta estava aberta, nenhuma cabeça explodiu. Ninguém apareceu, pelo menos não onde esperava. Escutou um par de gritos agudos de volta.

Uma menininha muito menor que o esperado se escondeu atrás de um irmão também muito pequeno. Ambos tinham os olhos arregalados, duas figuras magras e pálidas contra a escuridão da casa. Cheiravam a xixi e tremiam. A bala teria passado pouco acima da cabeça deles, se tivesse atirado.

Ethan voltou à realidade, e imediatamente trocou o tom. De certa forma ficou aliviado, talvez Rogério tivesse ido embora e os deixado em paz.

— Ei crianças, o seu papai ta—Notou algo por trás delas.

Tudo estava apagado, mas a luz do poste, agora que a porta estava aberta, pintava de vermelho o chão de cimento batido. As crianças nem pareciam notar, estavam paralisadas.

Ethan teve que as puxar pelo pijama para que saíssem pela porta. Foi meio grosso, mas é por que tremia. Lembrou de puxar a arma de forma que ficasse próxima ao corpo.Deixou a porta aberta depois que passaram.

Se Rogério estivesse ali, o homem já teria saído para ver o que estava acontecendo.

As crianças talvez não tivessem visto pela escuridão, mas havia um pequeno fluxo de sangue vindo de um cômodo à esquerda. Preocupado, voltou a atenção aos dois. Eles se abraçavam e escondiam da chuva. Pareciam estar bem, apenas soluçavam quietas.

— Me esperem aqui, e NÃO saiam até eu mandar. Não importa o que ouvirem, não entrem em casa de forma alguma. Se acontecer alguma coisa, fujam para o hotel no alto do morro — Disse no tom mais firme que conseguiu sem gaguejar.

Se eu matar seu pai ou ele me pegar primeiro.

Se pelo menos ele soubesse quantas vezes já tinham ouvido essa ordem antes, não teria sido tão ríspido. Elas sentaram obedientes contra a parede da casa, para se esconder da chuva.

Cade a mulher?

Ethan passou pela porta piscando contra a escuridão e a bateu silenciosamente atrás de si. Mais para usa-la como barreira do que para se esconder. Se Rogério queisse sair escondido, teria que abrir a porta e o barulho o entregaria.

Bang, bang. E teria acabado.

Não tinha muito sentido fazer as coisas escondidas agora já que, sem perceber, tinha acabado de fazer um escarcéu na porta.

É assim que acontece? É isso que você veio fazer?

Agora lá dentro, percebeu quão abafada era a pequena casa. Só de deixar de sentir o vento gelado contra o peito já se sentiu mais confortável, mas não menos ansioso.

A sala dava direto no beco. Não tendo janelas, todo ar entrava pela porta que estava fechada até agora. Ethan respirou fundo para se acalmar, agachado com as costas na porta.

Era como se houvesse uma barreira invisível o segurando. Estava numa casa normal, a atmosfera parecia mais densa do que nunca.

O ar parecia mais pesado, como se algo o pesasse.

Algo como...

O cheiro.

O mesmo que sentiu mais cedo, rosa, doce. Tão forte que o ele pensou que fosse passar mal. Ficou mais alguns segundos parado contra a porta, pelo menos até sentir seu coração parar de bater nas orelhas.

Pensa, porra. Pensa porra.

Olhou em volta do cômodo pequeno, de no máximo três metros quadrados. A sua direita havia duas portas, uma sendo onde viu as crianças mais cedo e outra que não tinha notado antes. Mais duas à esquerda, uma delas diretamente de frente com a porta da sala, provavelmente o banheiro. Por baixo da porta sanfona, via a luz acesa e só então percebeu que o chuveiro estava escondido pelo barulho da chuva.

Então é aí que você tá.

Logo abaixo da porta, havia uma grande poça de sangue que se estendia até a porta da esquerda. A casa tinha sido construída em desnível, para que a água fosse fácil de ser levada para fora quando lavada, então aos poucos o sangue ia fazendo seu caminho entre os buraquinhos no concreto. O cheiro de ferro estagnava a atmosfera do ambiente.

Quando um trovão iluminou brevemente o cômodo, revelou marcas e mais marcas de mãos nas paredes, feitas com sangue. Um par de mãos menores, geralmente acompanhadas de marcas de unhadas, tiravam o já pouco reboco da parede.

Fantasiou a cena centenas de vezes no caminho até a casa. Mas não esperava por isso. Era pra ser jogo rápido, Rogerio aparecia na porta, Ethan atirava e ia embora, como qualquer meliante faria.

Não é como se alguém fosse vê-lo entrando ou saindo, morando onde morava você se acostuma a não espiar e nem a bater nas portas dos outros.

Se os dois cômodos da direita eram quartos, e o da frente um banheiro, a porta da esquerda só podia ser uma cozinha, se tivesse uma.

Juntando toda coragem que conseguia, finalmente Ethan se pôs a avançar lentamente com a arma em punho — o mais firme que a tremedeira permitia -, a respiração entrecortada e o coração tão alto que achou que poderia ser ouvido do outro lado da parede. Esticou a mão esquerda e tocou com receio a porta sanfona. Abriu-lhe um pouco, queria confirmar se ele realmente estava lá. O barulho do chuveiro pareceu ser destampado.

Tudo ocorreu muito rápido. 

Sangue de Moleque - KorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora