Capítulo 2.4

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Bruno era um cara legal e tudo mais, mas às vezes tinha umas manias muito estranhas. Quando era mais novo, tinha se engasgado com uma bala e depois disso nunca mais confiou em comida verde no seu prato.

— Só tem vermelho cara, uma menininha que me vendeu.

Era estranho, mas Ethan mesmo também não era de todo normal. Por isso davam certo juntos. Ou quase isso.

Ethan ficou de pé do lado dele.

— Você cresceu mais?

Ethan era mais alto que a maioria das crianças no bairro, o que o levava a sempre ser escolhido como goleiro nas peladas. Tinha o cabelo castanho e curto, não fosse a franja. Pele branca como se tomasse banho com cloro, motivo do apelido "café com leite na escola". Tinha também o que sua antiga professora de português chamava de "olhos expressivos".

Ela dizia que dava pra se ver o que se passava na mente dele só de olhá-lo. Por sorte, na maior parte do tempo Ethan nem sabia o que estava sentindo, mas gostava disso. Não que fosse daqueles tipos que sempre estão por aí sendo ignorantes e olhando feio para o mundo todo, ou que usasse os olhos como Sasha fazia. Mas sim porque usava isso a seu favor quase diariamente.

Ethan gostava de briga. A ideia de uma boa troca de socos com quem quer que fosse durante o recreio era o que o tirava da cama quase todos os dias. Seus olhos ajudam muito, bastava um olhar calculado e conseguia fácil, fácil uma rincha. Nessas ocasiões dava pra ver nos olhos dele o pedido de violência, como quem diz "pode vir".

Bruno era seu oposto, alto como um poste, moreno como mel escuro, magro. Se esconderia no meio de uma multidão facilmente, contando que não abrisse a boca.

Sério, já tinha recebido diversos convites para participar de comerciais de televisão estreando algum creme dental com efeitos fajutos.

Usava o uniforme igual ao de Ethan, os únicos diferentes de todos os outros alunos que estavam no ponto de ônibus naquela hora. Já esperava por isso, mas quando chegou ao ponto pode ver claramente quando começaram a rir dele. Só dele, Bruno já tinha passado por isso pelo menos um ano antes, quando entrou nessa mesma escola.

— Coé tropa, se liga nessa figura aqui, haha. Ta indo prum velório porra? – Mesmo os que não o conheciam comentavam alto sobre a roupa, até tentaram pisar algumas vezes no sapato dele. Ethan os empurrava, quase sem ser de brincadeira, já contando quantos deles conseguiria derrubar antes que o cercavam. A resposta era uns 3. O que era bom, uma mancha de sangue seco seria quase impossível de tirar da camisa.

Os olhos dele já começavam a brilhar com a antecipação.

— Quanto que seu pai cobra mesmo pra colocar os dentes de volta? — Perguntou alto, para provocar os garotos.

Acontece que o pai de Bruno era um dentista muito conhecido, de fala bonita, carteira cheia, mas sem um fio de cabelo na cabeça e um pingo de honra no bolso.

Muitos anos atrás fazia visitas regulares a uma das meninas do hotel e sempre era recebido como um fiel cliente. No começo ficava meio constrangido e, dizem algumas das meninas, até mesmo sentia remorso por estar ali. Infelizmente era apenas humano, e foi questão de tempo até passar para visitas semanais, chegava cumprimentando a todos e chamando cada menina pelo seu nome.

Nos últimos meses começou a trazer junto de si um pequeno Bruno. Como não tinha muito o que se fazer com a criança, logo Ethan foi colocado para fazê-lo companhia. Brigaram assim que se viram, então Mama os trancou num quarto vazio e deixou que se resolvessem, o pai nem notou, já ia subindo as escadas hipnotizado. Quando já estavam ambos cansados dos tapas e beliscões, fizeram as pazes, declarando empate, e se tornaram amigos.

Quando o pai deixou de trazê-lo foi questão de tempo até Ethan encontrá-lo no colégio onde estudava na época, levando uma baita bronca da bibliotecária por não parar de falar durante as aulas.

Acontece que a mãe dele tinha descoberto sobre as pequenas "aventuras" do pai, que dizia estar levando-o para brincar com um amiguinho – não que fosse mentira, mas eram as mulheres com quem seu marido estava dormindo que a deixavam brava.

Chutou ambos para fora de casa, o que levou Dr. Gustavo a basicamente implorar a ajuda de Mama, e voilà, eventualmente passavam todos os dias juntos. Mama conseguiu para eles uma casa para morar no morro, mas ele nunca mais visitou o Ninho.

Ethan ia pensando nisso enquanto o ônibus os levava pela cidade. Levariam mais outra hora até chegar no próximo ponto onde pegariam um segundo ônibus que, finalmente, os levaria até bem perto da escola para andarem o resto do caminho.

Checava aos poucos cada pedaço da roupa branca. Nenhuma mancha.

O que aconteceu com a facilidade de se sujar que a gente vê nos comerciais de sabão em pó?

Ethan tinha esperado o ônibus chegar para partir para cima do garoto que zombava dele. Assim que viu o ônibus parou e ele viu que pegaria o mesmo que o garoto – significando que a zombaria duraria ainda mais — partiu pra cima do moleque e lhe acertou um chute entre as pernas. Quando ele se dobrou, acertou-lhe um soco nos dentes. Já ia se preparando para partir pra cima dos outros quando Bruno o chamou pela janela, o ônibus já estava partindo.

O motorista devia ter achado que se tratava de um assalto ou uma briga de drogados e não parecia querer fazer parte da manchete no jornal da manhã.

Quando ia entrar, ficou preso na porta. O cobrador olhou feio pra ele, xingou e apertou o botão várias vezes para que a porta fechasse. Se pudesse, teria esmagado Ethan ali mesmo.

– Seu puto, eu tenho que ir pra escola!

De um lado os garotos puxavam seu braço e ele revidou com socos cegos, do outro, o motorista o xingava ainda mais.

Ethan se espremeu o máximo que pode e finalmente foi cuspido pra dentro do ônibus. Os muleques batiam na porta fechada atrás dele.

– Eae, vai ficar estacionado pra ver?

Olhou feio para o motorista e até pensou em dizer alguma coisa, mas escutou Bruno rindo lá no fundo.

Ethan passou o cartão de estudante e foi sentar-se com ele, lá atrás, nos bancos altos do ônibus.

— Você realmente precisava? – Nem mesmo parecia bravo, já estava acostumado.

— Claro. – Jogou a bolsa nos pés e colocou os braços cruzados atrás da cabeça, fechando os olhos, já se sentia muito melhor agora.

— Você sabe que eles vão estar lá amanhã, né?

— O amanhã – Levantou um dedo e falou como um guru – é um mistério, meu amigo.

— Filho da mãe. – Bruno riu, já deveria ter desistido de botar juízo nele anos atrás — você não tem jeito mesmo.

Ethan sorria de olhos fechados.

– Mas ó: Um dia – apontou o dedo para Ethan, que sabia que ele fazia isso sem nem precisar abrir os olhos – você vai achar alguém que não vai conseguir bater. E eu vou rir muito da sua cara. 

Sangue de Moleque - KorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora