Capítulo 2.2

9 1 0
                                    


Não era seu primeiro dia na escola, mas sim o primeiro dia numa escola de boy.

Estava acostumado com as escolas da comunidade, a jogar em quadras de terra batida e, principalmente, com a merenda que as "tias" preparavam. E pra piorar a sua nova escola ficava quase do outro lado da cidade, levaria mais de duas horas pra chegar lá.

Não lhe descia a garganta a ideia de pôr que tinha de ir para um desses colégios de gente bacana. Entendia muito menos como — e porque — Mama estaria pagando por isso. Tinha ótimas notas, claro, mas isso era fácil onde estudava. Metade do tempo de aula eram gastos com a tentativa do professor de ganhar a atenção dos alunos, separando brigas ou desviando de algum objeto que voava em sua direção. Nessas ocasiões ele aproveitava para rabiscar o caderno ou ler alguma coisa, daí a origem das notas.

Usava essas distrações até mesmo para ir ao banheiro escondido quando já não aguentava mais a cacofonia de gritos e toda a baixaria presenciada diariamente, nem que fosse para respirar em paz.

É capaz de eu ter que pedir permissão até pra mijar.

A reação das meninas era prova real de que não pertencia naquele lugar. Mesmo quem o conhecia como o garotinho prodígio sabia que tudo não passava de fachada. Ethan conseguia ser pior que os moleques da sua sala, a diferença é que (quase sempre) sabia escolher a hora.

Ele, de onde vinha e quem era, no meio dos engomadinhos filhinhos de papai, não parecia certo.

Colocou a mochila nos ombros e pôs-se a descer o morro. Tinha sua própria via sacra diária para percorrer.

Na comunidade em que morava não havia ônibus que subissem as ruas íngremes. E a maioria dos táxis, vans e transportes em geral pararam ao pé do morro, na frente da pastelaria do seu Joaquim, por ordem dos traficantes que dominavam a região.

Ninguém que não fosse "morador" subiria o morro sem permissão expressa deles, e de quem os comandava: Tuco, um cubano cafajeste que liderava a facção que dominou a comunidade nos últimos anos.

Até mesmo os idosos eram colocados nas picapes dos traficantes, junto com as sacolinhas de mercado, e levados até a porta da sua casa.

O morro era no geral um ambiente bem equilibrado. Se tu não mexesse com ninguém errado — quase todo mundo — não se meteria em problemas. Tinha o benefício de ser conhecido como protegido de Mama, o que já lhe garantia passe livre pela maior parte das ruas da favela. Mas ainda sim evitava ao máximo encarar os outros.

Vai saber quem não tá armado.

Disse isso mas se sentiu estranho, porque ele mesmo carregava uma arma branca na cintura. Se sentiu tão estranho que abriu a mochila e trocou o esconderijo pro fundo da mochila.

Desceu por becos e escadarias improvisadas até metade do caminho, quando começou aos poucos a ver o morro acordando. Era bem cedo e a maioria dos pais e mães de família estavam também deixando suas casas para irem pros seus empregos de jornadas com 12h. O carro do pão, que na verdade era um triciclo improvisado dirigido por um senhor, passava com um som automotivo chamando as donas de casa para comprar o pão do dia. Baristas levantavam portas dos estabelecimentos ruidosamente, e o cheiro de café recém passado se espalhava pelo ambiente, mais uma estratégia de marketing, assim como as meninas do Ninho que se sentavam na janela.

Havia certo ar de calma naquilo tudo. A maioria dos baderneiros ainda dormiria até depois do almoço, as crianças ainda tinham horas até irem pra escola. Todos que passavam por ele iam a algum lugar. Trabalho, feira, de volta pra casa.

— Quer uma bala moço?

Uma menininha de no máximo dez anos de idade arrumava os conteúdos de uma pequena bolsa de isopor enquanto tentava acompanhar o ritmo dele. A bolsa era claramente pesada demais para ela, então ela pendia para o lado oposto, tentando equilibrar o peso enquanto andava.

— Obrigado, mas hoje não.

— São três por dois reais!

– To sem dinheiro.

– Eu faço PIX. — Ethan parou de andar para olhá-la. Conhecia essa estratégia. Conhecia ainda mais a pequena pilantra.

— E você não tinha que estar na escola senhorita Livia? As férias acabam hoje. – Ele se abaixou até ficar na altura dela.

— E você não tem dois reais pra me ajudar a voltar pra escola? – Ela imitou olhinhos de filhote. Não durou muito a cena, Ethan deu um cascudo nela. Ela riu mas logo parou para tossir. O som era feio e carregado.

— Você tá tomando seus remédios? – Fez que ia beliscá-la na barriga, não conseguiu evitar parecer um pai preocupado.

— Claro, os que eu consigo comprar. – Ele franziu as sobrancelhas, ela cruzou os dedos – Palavra de escoteira!

— Você nunca foi escoteira.

— Aí você me ganhou no argumento – Ela fechou o zíper – seu chato.

— Nós já não conversamos sobre isso? Você tem que parar de sair no frio e na chuva pra vender – Ele recomeçou a andar e ela revirou os olhos, dessa vez ele beliscou de verdade.

– Ei, eu falo sério. Não me faça falar com a sua mãe.

— Mas eu to tomando certinho! Poxa, você é muito chato mesmo.

— Mesmo assim, você ainda deveria estar na escola, não pra rua—

— Chaaaaaaaaaaaa—

— Ei.

— Aaaaaaaaa—Ela parou, tossia de novo. Olhou para ele derrotada, nem mesmo na birra ganharia dele hoje.

— Pensei que você já tivesse comprado o suficiente com as vendas das férias.

— E eu comprei, mas o médico do postinho disse que eu vou precisar tomar um mais forte, e ele é tipo super caro e tem gosto de meleca.

Se trocaram é porque o tratamento não está mais funcionando.

— Qual o nome do novo remédio Livia?

— Sabe que eu não sei?

Ethan nem se importou em responder, pela cara dela já sabia o que estava por vir.

— Mas quem sabe, só uma sugestão minha, se você comprar uma balinha, a minha memória não refresca um pouco e me ajuda a lembrar o nome...

Ethan suspirou, para uma criança de nove anos, ela sabia muito bem como ganhar um argumento.

— Essa é a última vez, amanhã eu quero te ver na escola. Promete?

— Ah, mas eu gosto muito mais de vender, dá pra passear e eu ainda ganho um dinheirinho, sabe?

Ethan fechou a cara.

— Promete.

— Tá bom!

Ethan pegou a carteira do bolso para pegar as moedas. Ela ficou na ponta dos pés para olhar dentro dela.

– Mas já que é meu último dia...eu vi que você tem uma nota de cinco aí e olha só, tô com uma promoção exclusiva, se comprar três balas sai por cinco!

Sangue de Moleque - KorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora