Capítulo 1.5

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Pouco depois, quando o carro de patrulha finalmente chegou, o giroflex refletiu na saia dela.

O policial encontrou apenas a mulher observando o acidente. As outras tinham partido muito antes, sumindo nas sombras das vielas. No relatório, se fosse feito um, teria sido reportado um veículo capotado e uma mulher negra, alta e vestida com roupas chiques demais para serem autênticas e quentes demais para aquela época do ano. Mama observava o fogo sem expressão alguma, seguindo com os olhos a viatura.

Estranhamente, o carro não parou, apenas diminuiu o suficiente para conferir a situação, encarar por alguns momentos a passante e comunicar algo pelo rádio. O policial olhou feio para a mulher, teria xingado, cuspido, e a mandado para casa se fosse outra. Provavelmente depois de soltar algum comentário racista. Mas algo no jeito que ela o olhava fez com que se calasse, se soubesse realmente de quem se tratava, nem mesmo a olharia nos olhos.

Quando pareceu satisfeito com o que tinha visto, acelerou, cantando os pneus e piscando o giroflex. Sumiu por entre as ruas mal iluminadas da favela e então para a pista, de onde o carro tinha pulado por cima da barreira de proteção, e sumiu no meio dos outros carros.

Após esperar alguns cuidadosos minutos, Mama soltou a abertura lateral da sua saia. O vento frio arrepiou a pele das pernas. Por baixo dela havia uma criaturinha agachada, agarrada fielmente a uma maleta de couro. O brilho do fogo reluziu em suas pernas negras um tom de chocolate, como ela mesma gostava de se gabar.

— Agora... – Disse com a voz mais gentil que conseguia e esticou a mão para ele.

O garoto recuou, piscando os olhinhos, como quem espera um tapa. Mama persistiu com a mão até encostá-la na bochecha do garoto, a pele ainda estava quente, mesmo estando encharcado de chuva e barro. Para ela era estranha a sensação da pele tão nova, tão frágil contra a sua própria, já sofrendo com os sinais inevitáveis da idade.

– Por que não entra para tomarmos um chocolate quente e saímos dessa chuva, sim? – Ela sorriu, sorrisos reais não eram seu forte.

Fitou o garoto, do alto de seus saltos, através de cílios espessos e nenhuma maquiagem. Dois olhinhos castanhos a encararam de baixo, neles refletiam as mesmas chamas que consumiam sua família, ou o que tinham dito a ele que era uma. No rosto, uma queimadura longa e feia, a pele da mão retorcida.

— Daí você pode me contar seu nome. E tudo sobre o que seu pai fazia trabalhando para um departamento do governo que, oficialmente, não existe.

No momento as palavras não significavam nada para ele, tinha a maleta e nada mais importava. Nem sequer se preocupava em ouvi-la, já estava se preparando para correr em qualquer direção, mas algo o segurou sem nem mesmo tocá-lo.

Ficaram ali mais um momento, ambos se analisando, medindo o próximo passo enquanto o fogo brincava com a sombra que formavam no pavimento. A todo momento ele podia sentir o cheiro do perfume que exalava das cintas da mulher, delicadamente perfumadas. Aquilo ficaria marcado em sua memória por toda sua vida, mais do que o fogo, o acidente ou seus pais que ele lhe tinha levado.

Quando ela finalmente lhe ofereceu a mão, fez um sinal para que ele a acompanhasse novamente, e se puseram a andar. Ele levantou e puxou a maleta junto, acompanhando a mulher. Ela teve que trocar de lado para evitar a mão machucada, cada passo seu acompanhado por três do menor.

Ele jogava todo seu corpo para o lado oposto, na tentativa de balancear o peso da maleta quase tão grande como ele, mas ela não ousaria tomá-la dele, não depois do que vira. Caminham morro acima sem pressa, ainda desconfiados um do outro. O caminho levava até o que parecia ser um casarão muito antigo, até mesmo para onde moravam.

A mulher, sabiamente, não tirava os olhos da criança que marchava ao seu lado. Depois de tudo que tinha acontecido nos últimos minutos, ia embora com ainda mais perguntas do que quando recebeu a chamada pelo rádio. Tentou se lembrar da última vez que havia chorado também e, por fim, simpatizou com o garoto. Quem sabe não faria o chocolate quente ela mesma, não uma das garotas.

Tudo que passava na sua cabeça era a dúvida de por que alguém esquentaria chocolate enquanto caminhavam em direção ao que era na verdade um cortiço.

Quando a chuva parou, já na alta madrugada, e a maioria dos clientes que não tinham pago a noite toda ou durante todo esse tempo, deixaram o lugar, o fogo do acidente já havia se apagado e os curiosos ido dormir. O metal, entretanto, continuava exalando fumaça sozinho no escuro — as labaredas tinham queimado a lâmpada do poste acima do local do acidente, escondendo parcialmente o local, antes iluminado pelo próprio incêndio, em sombras escuras. Somente os gatos moribundos observavam a cena. Eles e Mama, do alto da janela de seu quarto no terceiro andar do cortiço.

Marta havia acabado de deixar o escritório de Mama, com ordens para se livrar de qualquer um que abrisse a boca sobre os eventos daquela noite.

Ela observava toda a comoção com indubitável fascínio. Não tão estranhamente, passaram-se horas e a rua continuava vazia. Ninguém veio, nem a polícia, nem uma ambulância, como era de costume na onde moravam. Mesmo assim...

"Alguém sempre vem, nem que seja para coletar os corpos." — E o que os moradores não tivessem tido a chance de saquear.

"Nem viriam" – Pensou por fim, acendendo um cigarro encostada na janela embaçada, atrás dela a criaturinha agora jazia deitada num tapete de peles dentro do seu escritório, encolhida, abraçada a maleta de couro derretido como se fosse sua própria mãe.

Nem mesmo tocou no cigarro, apenas o observou até que se consumisse sozinho no quarto gelado. Depois desse dia nunca mais fumou. Pela manhã, Marta reportou que não restava nada além das marcas que o combustível deixara no asfalto. Diziam os boatos que o carro foi recolhido antes do amanhecer por um caminhão sem placa nem identificação.

Disseram também que tiraram o carro e 3 corpos, um homem e duas mulheres, em sacos pretos. O casal sem possibilidade de identificação e a outra passageira no banco traseiro com a única pista quanto a sua identidade sendo o fato que era careca. Pelo que parecia, os fios sintéticos da peruca tinham derretido e grudado à base do crânio. Bocas escondidas diziam que o corpo tinha sido despejado ali depois do acidente, na alta madrugada, e pouco antes de as chamas se apagarem, por dois homens e uma mulher de salto alto.

Mas nessa parte ninguém acreditou, pois sabem como é:

As prostitutas são todas umas exageradas.

Sangue de Moleque - KorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora