Capítulo 1.3

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No caminho, os cacos de vidro formaram uma passarela reluzente, como um rastro de cristais que guiam até um amante, e de amantes Sally entendia bem. Tinha perdido a conta de quantos casamentos arruinara ao longo dos anos que trabalhou para Mama, alguns até mesmo sem querer.

Também, por ventura, entendia ainda mais de relógios, um hobbie que aprendera com os anos, quase que por pura osmose. Então quando viu um belo Chesterfield preso ao pulso do motorista que pendia para fora da janela, esqueceu-se do fogo, do risco iminente de explosões e até do fato de que ainda havia um corpo que estava preso a ele.

- Taí um belo relógio, bonitão. Não ligue se eu o pegar só por um instante. — Disse, abrindo um sorriso malicioso, cheio de ganância.

— Porra Sally, roubar dos mortos não, isso dá má sorte e você sabe disso! – Marta xingou baixinho, o suficiente para somente Sally ouvir.

— Vá se— buceta! — Sally gritou e jogou para cima o relógio que queimava sua pele. O fogo tinha aquecido a platina pura, nada como as imitações que apareciam por aí, com certeza deixaria uma marca.

Virou-se para ver a trajetória dele pelo ar. Quando o relógio caiu, fez um barulho feio e pesado.

Marta fez que ia se aproximar, sem realmente se mover. Trocara o olhar do chão para as chamas, mas ainda evitava Mama.

– Você está bem?

– Lá se vai metade do valor direto pra porra do ralo. Corno maldito –- Xingou contra a própria dor, baixinho. Mesmo sendo parte da sua natureza, ela sabia que Mama não gostava desse linguajar. E que provavelmente diria alguma coisa tosca como "o cadáver não tem culpa em nada disso".

— Eu tô te falando...é mau agouro! – Mais uma vez, ela quebrou seu silêncio. Mas dessa vez mais por um instinto de autopreservação espiritual do que para repreender a outra. Podia andar armada, mas ainda frequentava a igreja aos domingos.

– Que saco, me deixa. Marta tentou se aproximar de novo.

– Não precisa disso aí não menina, deixa quieto.

- Qual foi? O cara é bem da vida. E não é como se fosse fazer alguma falta pra ele de qualquer forma; A gente deu uma puta sorte grande e você fica aí que nem uma bocózona jogando praga.

Sally tentou se abaixar novamente do alto dos seus saltos agora sujos, procurando recolher as milhares migalhas de vidro que caíram do relógio, ainda tentando xingar baixinho.

— Que se dane você, pagã. Eu vou pro meu quarto. – Nesse momento, Mama abriu um guarda-chuva bordado, mas não o estendeu para cobrir o menino. O cabelo preto dele grudava à testa, conforme a chuva lavava o resto de cinzas do couro cabeludo.

A mulher se virou, pronta para sumir entre as vielas, mas não antes de dizer olhando para baixo, mas ainda não baixo o suficiente:

— Dona, eu já não sei não. – Ela olhou para o garoto que nem tinha se mexido ou feito qualquer esforço para se proteger da chuva — Isso daí enfurece os espíritos e já me bastam os vivos pra atazanar. Eres mala sorte.

O sotaque tão bem escondido escapou como quem derruba o vidro de pimenta num caldo. Perto de Mama, era difícil manter as fachadas, especialmente Maria, que já havia visto-a arrancar a pele do rosto de alguém.

Ainda assim, Mama continuava impassível. Desde que fizera sua caminhada calmamente até o local do acidente, morro abaixo usando saltos altos, tinha mantido uma postura impecável. Apenas fazendo o papel de observadora, acompanhava o menino com pequeno fascínio. Havia algo nos olhos dele que a preocupava um pouco.

Sangue de Moleque - KorvoOnde histórias criam vida. Descubra agora