Capítulo 4

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Era mais um longo dia, mais uma noite mal dormida e mais um dia de trabalho naquele inferno. O meu estômago revirava só de pensar na quantidade de exames diários que passavam pelas minhas mãos. Tanta gente doente, tanta esperança falsa de cura e eu fazia parte disso, estava também mentindo, machucando, endossando um estilo de vida que não existia.

Eu era um mentiroso.

Precisava pedir demissão daquele lugar, precisava sair dali, hoje seria um bom dia para pedir a minha sonhada demissão? Procurava meios de justificar a minha saída mas não conseguia. Sempre imaginava ele com aquele discurso patético de que sou importante e que eu só precisava pensar pra reencontrar a antiga paixão que eu tinha pelo projeto.

Eu tinha, até ele se tornar uma indústria de mentiras...

Tanto tempo mentindo... Se escondendo...

Respirei e resolvi vestir a roupa, tomei uma caneca quente de chocolate, pelo menos isso ainda era prazeroso de tomar, o sabor continuava o mesmo, igualzinho ao que a minha mãe fazia. Aiai minha mãe... O que ela pensaria de mim ao saber o que me tornei?

Desci as escadas, pois o elevador se tornara algo extremamente irritante, excesso de pessoas, de cheiros e barulho. Eu gostava do silêncio. Era extremamente difícil conseguir silêncio numa cidade como São Paulo, então qualquer oportunidade que eu tivesse agarrava com vontade. Desci a rua e em passos rápidos entrei na estação de metrô. Mais pessoas, mais barulho. Entrei no meio da multidão e por osmose entrei no vagão.

Tentei limpar a minha mente, tudo que eu tentava me concentrar era na voz artificial que falava o nome das estações.

"Próxima estação, Santa Cruz, desembarque pelo lado direito do trem..."

Queria poder sentir dor de cabeça, qualquer coisa que me permitisse adoecer e morrer. Ahhh a morte, como eu ansiava a morte! Tantas tentativas fracassadas, tanto problema acumulado e apenas cura, vida e barulho.

Entrei no ônibus para Santos com a mesma motivação de sempre, nenhuma. Hoje teria uma nova confinada com certeza, tudo no consultório daquele cara levava a pessoa fragilizada a se sujeitar àquilo, com certeza aquela garota viraria mais uma na toca e que se encantaria pela cura. Humpf... grande cura. Se ela soubesse o futuro que a esperava. 

Fechei os olhos e imaginei o ônibus batendo, eu voando, batendo a cabeça com força na estrada e o crânio explodindo. Um traumatismo craniano, pessoas comentando o quanto o acidente foi feio, um velório com poucas pessoas, caixão fechado, coroas de flores. As mesmas coroas de flores que tínhamos comprado... Eu precisava esquecer aquele episódio, eu PRECISAVA.

Mas logo ela tinha que ficar doente? São Paulo é um estado tão grande e logo ela tinha que adquirir uma doença com diagnóstico complicado? Eu disse que seria arriscado atender, como eu iria olhar para a cara dela depois de tudo que fizemos? Olhar para ela e fingir que nada aconteceu.

Olhei para o céu, o tempo estava firme e bufei ao perceber que estava chegando perto de Santos.  Desci na rodoviária estiquei o meu corpo e respirei fundo, só me restava torcer para que ela negasse a tentativa de diagnóstico e me dava uma chance de respirar sem medo.

Maldita hora que me envolvi nessa confusão toda.

Chegando na portaria do hospital, coloquei o melhor sorriso que eu podia e entrei em mais um dia no meu inferno pessoal. 

- Bom dia, dr João! - Disse o guarda da portaria!

- Bom dia! Hoje tem jogo do Corinthians, trouxe uma caixinha de lenços aqui pro senhor.

- E pra que eu vou querer lenço, dr?

- O jogo vai ser sofrido pro Santos né, vai lá saber quanta lágrima vai rolar até o jogo acabar?

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