VONTADES

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Levantei antes que eu mudasse de ideia e me dirigi até a sala, ao chegar no local vi que Valentina estava sentada em uma poltrona que tinha na sacada apenas com o som do mar que era próximo invadindo o espaço. Ela já vestia pijama e estava bebendo uma cerveja enquanto encarava a rua. Me questionei o que ela estava pensando tão distraída, suspirei, tomei coragem e me aproximei lentamente.

Ela percebeu a minha presença e nada disse ou sequer me olhou, apenas continuou com o olhar vago, isso me deixou mais a vontade, confesso que estava levemente apreensiva com a reação dela. Sentei em uma das poltronas vagas e continuei um tempo em silêncio encarando a rua como ela. Esperei um tempo assim procurando as melhores palavras para usar.

- Valentina... – Comecei. Ela me olhou interrogativa esperando o que eu tinha para dizer. – Obrigada por ter me ajudado lá na festa.

- Você ia mesmo beijar aquele lixo do Daniel? – Perguntou com tom de indignação.

- Claro que não. – Me defendi rapidamente.

- Pois foi o que pareceu, enfim, mas eu não tenho nada a ver com isso, foi o que você me disse. – Deu de ombros e voltou a encarar a rua.

Ela parecia realmente chateada, na realidade nunca a tinha visto tão silenciosa, eu sei que tinha sido grossa com ela, mas deveria me desculpar por ter dito a realidade? Ela realmente não tinha nada a ver com isso. Mas eu estava na casa dela, com as roupas dela e só não fiz mais confusão porque ela se meteu e fez a confusão por mim. Além do mais, se eu tivesse seguido o que ela me falou nada disso teria acontecido. Contei até dez para por a cabeça no lugar. Não sei se deveria dizer que na verdade minha única consideração da noite foi beijar ela. Melhor não.

- Eu não considerei em nenhum momento beijar ele, só não sabia como sair daquela situação, mas você estava lá e me ajudou, está aqui e está pela primeira vez na vida sendo legal comigo e mais do que precisava ser, já que sei que eu não merecia que me tratasse bem, então eu só queria dizer obrigada. – Falei calmamente com toda sinceridade.

- Você nunca me deixou ser legal com você. – Parecia que já tinha a resposta pronta. O tom de voz dela ainda demonstrava que ela estava magoada com tudo, nunca pensei que ela seria assim tão sensível, sempre pareceu ser uma fortaleza e não se abalar com nada.

- Agora a culpa é minha por você ter essas ideias erradas de menina mimada e ficar implicando com absolutamente tudo que eu faço? – Questionei tentando não ser grosseira. – Falando nisso, aqueles encartes no seu quarto de ONG's e feminismo, não faz muito sentido pra sua fama de coxinha. – Ela esboçou um micro sorriso, ponto!

- Estava fuçando no meu quarto, Luiza? – Perguntou me olhando novamente.

- Estava olhando, ué, eram coisas expostas. Mas fala, você não é contra tudo que seja público, destinado a gente pobre, digna e trabalhadora? O que é aquilo?

Ela soltou uma gargalha daquelas de quem ouve a melhor piada do dia, aquelas que depois ficamos lembrando e rindo novamente, fiquei a esperando me explicar qual era a graça.

- Você realmente acredita nisso tudo que eu falava? – Seguia rindo e eu percebi que ela estava rindo da minha cara. – Eu faço serviço voluntário as vezes e doações para algumas instituições.

- Ah, não vem com essa agora de que você não pensa nada daquilo, dois anos falando sem parar aquele monte de bobagens.

- Sim, aquele monte de bobagens, eu falava exatamente porque você ficava tão brava comigo que valia a pena.

- Você não pode estar falando sério. – De fato eu estava incrédula com que ela estava me contando.

- E você acha mesmo que eu sou a favor da pena de morte, redução da menoridade penal, sou contra férias e décimo terceiro? – Ela seguia rindo sem parar.

- Isso tudo saiu da sua boca, não da minha, Valentina. – Ela ria tanto que eu me vi rindo também, não era possível que ela estava falando a verdade.

- É, mas é tão absurdo que achei que fosse impossível de levar a sério, mas confesso que era bem engraçado te ver brava, não que precisasse muito pra te ver brava.

- Você é uma praga, Valentina, não consigo acreditar no que eu estou ouvindo!

- Se você tivesse se dado uma chance de me conhecer antes. – Ela já estava mais leve, tinha perdido o semblante pesado e finalmente comecei a me sentir honestamente mais a vontade em estar ali.

- E pra que? Você demonstrava ser uma estúpida. E quem disse que estou dando chance de te conhecer agora?

- Não está? Quem veio conversar comigo foi você. – Fiquei levemente sem graça com aquela constatação dela, mas eu é que não iria demonstrar.

- Não, eu vim demonstrar o mínimo de gratidão pelo que você fez por mim hoje, além disso eu ainda te odeio.

- Então me da uma chance de te fazer parar de me odiar. – A conversa estava trilhando um caminho perigoso.

- E qual seria a sua sugestão? – Ela me encarava quase do mesmo jeito que me olhou na cozinha da festa, mas dessa vez, por algum motivo, isso não me incomodou.

- Joga um jogo comigo. – Essa conversa estava me dando um frio na barriga, uma parte de mim dizia para encerrar, ir dormir e fingir que esse dia nunca aconteceu, já a outra parte estava morrendo de curiosidade pra saber até onde ela iria.

Entre ambas, qual seria a vencedora?

- Qual jogo? – Perguntei sem conseguir tirar os meus olhos dela.

- Eu te desafio a sair comigo, um date, só nós. – Meu coração disparou, desviei o olhar, pela primeira vez não consegui enfrenta-la.

- Valentina... Chega, é melhor a gente não continuar essa conversa. Você foi muito legal comigo hoje, obrigada, mas não da pra mudar dois anos em uma noite. – Ela apenas assentiu e encarou a rua como fazia a hora que eu cheguei. – Eu vou dormir, se você quiser dormir na sua cama, eu não me importo ou se quiser eu venho dormir no sofá. – Ela me olhou com as sobrancelhas erguidas demonstrando surpresa.

- É melhor não, você tem razão, não da pra mudar dois anos em uma noite.

- Está bem, boa noite então.

- Boa noite, Lu.

Suspirei e apenas a deixei ali, eu tinha consciência total de que ela tinha conseguido mexer comigo naquela noite, não sabia dizer exatamente o que eu estava sentindo, mas era algo diferente, ver aquele lado mais frágil, conseguir manter um diálogo, sem falar que ela conseguia ficar ainda mais bonita com aquela roupa de ficar em casa e sem maquiagem.

Só que ao mesmo tempo que eu considerei a proposta dela e até disse levianamente pra vir dormir comigo, o que no fundo eu fiz rezando pro destino nos pregar uma peça e acabasse sabendo por fim o que ela tinha que me provocava tanto, eu tinha medo, medo de deixar ela se aproximar, de se tornar inevitável, dela conseguir quebrar mais barreiras do que seria seguro pra mim, afinal ela conseguiu com facilidade quebrar várias, afinal no início do dia eu a odiava com todas as forças do meu corpo, mas no momento que estávamos ali apenas rindo juntas por segundos eu esqueci todos os motivos que me fizeram odiá-la.

Deitei na cama dela, tinha o mesmo cheiro da camiseta que ela havia me entregado, pelo menos ali eu conseguia sentir sem parecer uma idiota, será que era possível alguém ser cheirosa assim? Foi assim, traída por não ter controle dos meus próprios pensamentos, que considerei pela primeira vez esquecer tudo que tinha acontecido antes de hoje e ir até ela e chamar pra ficar comigo, nem que fosse só por aquela noite.

Mas tratei de dispersar essas vontades e adormeci ali mesmo, sentindo o cheiro da mulher que eu mais odiava no mundo me questionando se eu realmente a odiava. 

Verdade ou Desafio?Onde histórias criam vida. Descubra agora