A VIDA CONTINUA

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"Querido diário, a cada dia que passa mais a certeza da existência de fatos concretos se afasta. O império romano tinha certeza que nunca cairia, todos tinham certeza de que o Titanic nunca afundaria, eu tinha certeza de que tudo sobre mim era e continuaria sendo completamente entediante. Talvez fatos sejam só ilusões a mercê do tempo esperando serem desmentidos"

                 Trecho do diário de Charlotte
                         15 de abril de 1913

Charlotte não conseguiu sair de seu quarto durante os seis dias seguintes, seis dias deitada em sua cama, vendo garras saltarem de suas mãos sempre que se perdia em desespero ao lembrar de sua infeliz vítima, seis noites onde seus olhos regados a lágrimas conseguiam enxergar através da escuridão. Ao menos o único sangue sendo derramado era o seu, não que ela sentisse que aquelas pequenas mudanças a fariam matar alguém, de alguma forma ainda era ela.

Bem, um local isolado era sempre bem vindo quando o intuito era ignorar a realidade, mas ela não poderia passar o resto da vida em seu quarto. Não importava que ali ela tinha certeza de que não acordaria em uma poça de sangue, de que na plenitude de seu isolamento ela poderia fingir que tudo era um sonho.

Que ela era a boa e velha Charlotte Jhonson, cujo lema era "alguns tem de habitar as sombras para que aqueles que estão sob a luz pareçam mais brilhantes". A garota que tinha toda a sua vida planejada, morando em uma casinha isolada repleta de pássaros e talvez trabalhando como governanta,
a garota que era a única versão de si que sabia ser.

Mas tudo se tornou passado, sua vida se dividiu em antes e depois de ter descoberto ser uma aberração homicida. Chegou a hora de se recuperar de sua doença fictícia e voltar para a sociedade, não que alguma vez ela realmente tivesse sido ativa nela.

Sentia que seu corpo estava desconectado da realidade, conforme caminhava pelos corredores de sua casa e se preparava para voltar a escola, ela sentiu seu peso se desfazer. Era como se estivesse flutuando perante um sonho consciente, talvez nem tão consciente, afinal não era como se ela fosse conseguir acordar.

Talvez essa sensação de confusão se devesse ao fato de ter passado uma semana em seu quarto, como uma pobre donzela presa em uma torre vigiada por um monstro. Com a exceção do fato de que ela era o monstro, e sua torre estava protegendo qualquer pobre e burro herói que a tentasse salvar.
Esse trabalho teria de ficar a seu encargo, bom, Charlotte sempre amou uma quebra de padrões.

Sua caminhada até a escola foi algo instintivo, normalmente observava as pedras e flores pelas quais passava, mas agora ela nem ao menos se lembrava de ter começado a caminhar. Tudo o que tinha em sua mente era uma mistura de angústia e medo, cobertos por uma neblina, junto a lembrança de seu pai não se mostrando disponível nem ao menos para encarar seus olhos.

Ela não o culpava, na verdade entendia perfeitamente. Agora ela não era a sua filha caçula, sua confidente, sua maior admiradora.
Era uma representação de tudo de pior que essa família tem a oferecer, de tudo de pior que corre no sangue de Lorenzo, de tudo de pior que habita nele.

E simples assim, ela se tornou a personificação de seus maiores medos e fracassos.

Ela se dirigiu para as carteiras da segunda fileira da sala, como se era de costume. O colégio "Ultima oportunidad" era o único onde as fileiras eram formadas na horizontal.  No restante das escolas, as fileiras eram verticais cortadas pela metade e as salas eram divididas em três partes : filas dos meninos, filas das meninas, metade do segundo ano e metade do último ano.

Mas em Ultima oportunidad, isso não era visto como nescessário. Todos sentavam onde quisessem, independente do gênero ou ano e as matérias eram passadas separadamente no quadro.

OS SEGREDOS DE CHARLOTTE JOHNSONOnde histórias criam vida. Descubra agora