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Por um momento, achei que levaria bronca por chegar tarde, mas meus pais já estavam dormindo. Esquisito porém bom, assim não preciso ouvir discurso. Quanto mais próxima ficava a hora de dormir, mais minha ansiedade aumentava. Não sei se estou preparada para vê-lo amanhã.

De qualquer forma, acabei de conhecê-lo. É provável que em alguns dias ele seja simplesmente só mais um funcionário do meu pai, não devo perder tempo me preocupando. Só não sei como vou encará-lo depois daquela vergonha.

- Já vai dormir? - Aquele loiro baixinho perguntou.

- Acho que sim.

- A gente não ia assistir aquela série?

- Verdade! Eu quase esqueci. Mas você não tem aula amanhã de manhã?

- Não. Vai ter uma reunião de professores.

- Sortudo... Eu tenho que trabalhar amanhã, mas uns dois episódios não matam ninguém.

- É assim que se fala! - Ele sorriu.

Meu sonho sempre foi ser filha única, mas o Emporio é legal, me sinto sortuda por isso já que maioria dos irmãos mais novos são irritantes demais.

Os "dois episódios"  se tornaram 5 e eu já estava quase caindo de sono, então fui dormir, não queria acabar com o que restou da minha coluna naquele sofá duvidoso. O dia amanheceu tão rápido que senti que não dormi quase nada.

- O primeiro carregamento já chegou, tem que acordar mais cedo a partir de hoje. - Meu pai me recebeu, amigável, como sempre.

- Tá.

- O Maru anotou no caderno, dessa vez.

- Vou precisar de um decifrador pra conseguir entender a letra dele.

- É só perguntar.

Fiz tudo o que faço normalmente, mas acabei arrumando o cabelo mais que o normal. Nunca me importo, já que vou ficar num lugar todo bagunçado, mas, ao pensar naquele cara, senti necessidade de me esforçar um pouco mais.

- Bom dia, garota! - Maru me recebeu animadamente. Não entendo como alguém pode estar de bom humor após acordar tão cedo e ter tanto trabalho, mas admiro.

- Bom dia.

- Seu cabelo tá bonito.

- O seu também. - Ao perceber o que falei, acabei rindo, sei que é errado, mas não resisti. Digamos que Maru tem uma certa deficiência capilar.

- Mudei o xampu. - Por sorte, ele sempre reage bem ao meu humor aleatório.

- Você anotou o primeiro descarregamento, não é? Valeu.

- De boas. Depois você compra um refri' como agradecimento.

- Interesseiro.

- Que nada, é só uma sugestão.

- Então tá. Vou comprar um de uva.

- Mas o de uva é o pior!

- "Cavalo dado não se olhas os dentes". Ingrato.

- Não é minha culpa se é ruim.

- Não é, não.

- O de laranja é o melhor.

- Eu simplesmente não aguento mais refrigerante de laranja.

- E eu não aguento refrigerante de uva, negócio horrível.

- Tô vendo que a conversa tá boa aqui. - Meu pai chegou, impedindo uma guerra.

- Ele disse que não gosta de refrigerante de uva.

- Acho que o cabelo não é a única coisa que falta nele.

- Essa foi pesada... - Maru coçou a careca quase completa dele.

- Voltem ao trabalho. Podem discutir sobre sabores de refrigerante na hora do almoço.

Quando o segundo caminhão chegou, percebi que estava praticamente cochilando. Me assustei com o barulho e a agitação repentina, mas o que mais me surpreendeu foi a rapidez com que Anasui descarregou tudo, pelo menos é eficiente.

Anotei preguiçosamente tudo o que entrava e saia dali pelas próximas horas. Alguns homens zoaram Anasui por trabalhar de camisa, segundo eles, era desnecessário e estragaria a peça. A imagem dele sem camisa se formava na minha mente, mas ignorei até que sumisse. 

- E o refri' vai sair?

- Se você comprar, vai.

- Desumilde, ein...

- Você que é interesseiro.

Em pouco tempo, meu pai chegou liberando a gente para o almoço. O novato, vulgo Narciso, achou que devia sair para almoçar e voltar depois, então fui a encarregada de explicar tudo.

- Eu não sabia que funcionava assim. Bom, pelo menos vou acabar economizando. - Ele deu de ombros.

- Você mora sozinho? - Depois de fazer essa pergunta, senti vontade de me enterrar viva.

- Sim. É bem legal, mas às vezes me sinto sozinho, talvez eu adote algum desses gatinhos solitários.

- Vai virar um velho dos gatos?

- Talvez. Mas não é como se isso fosse um problema.

Eu não conseguia parar de olhar para aquele cabelo meio preso de forma bagunçada. Por um momento, me senti como uma stalker estranha, mas era bonito demais para não olhar. Aquele tom de rosa vivo era hipnotizante e o cabelo parecia tão macio que meus dedos fariam de tudo para tocá-lo.

- Sua camisa, rasgou um pouco. - Apontei para o pequeno rasgo que revelava um pouco de sua pele.

- Bem que eles avisaram. Acho que vou ter que trabalhar sem camisa...

- Se te incomoda, é só separar umas que você não gosta muito pra usar no trabalho.

- É uma ótima ideia! Finalmente alguém que usa o cérebro. Acho que eles trabalhariam só de cueca se tivesse o risco de danificar as calças também. - Ambos fizemos cara de desgosto só de pensar nessa possibilidade.

- É melhor irmos almoçar.

- Ainda não acredito que seu pai serve almoço.

- Pelo menos é uma surpresa boa.

- Exatamente.

*

O trabalho passou muito mais rápido após o almoço. Em alguns momentos, quase fiquei tonta vendo tantas pessoas para lá e pra cá. Mas não posso reclamar se o negócio da família está prosperando.

- Opa. - Alguém batendo no balcão de repente me assustou. - Desculpa, eu não queria te assustar. - Anasui. - Só queria saber se ainda tem muito trabalho, não que eu esteja reclamando... É que... - Ele parecia se perder entre as palavras.

- Tem algum compromisso e precisa sair mais cedo?

- Exato. - Ele encarava os pés.

- Sabe que isso pode ser ruim pra você que acabou de começar, né? Mas, dependendo do problema, eu consigo me virar com o meu pai.

- Preciso pegar um exame.

Um exame? De quem? Será que ele está doente? Ele mora sozinho, certo? Então é praticamente certeza que o exame é dele. Infelizmente, não temos intimidade o suficiente para que eu pergunte e algo me diz que é melhor não saber.

- Já que é assim, é melhor ir logo, laboratórios costumam fechar cedo.

- Muito obrigado, trabalho até no domingo para cobrir isso se precisar, é que realmente é urgente.

- Boa sorte... - Falei praticamente sozinha porquê ele saiu rápido.

Toda essa urgência do Anasui me deixou ansiosa. Quero saber do que se trata, mas não posso simplesmente chegar e perguntar se por acaso ele tem algum problema de saúde. Na verdade, ele parece perfeitamente bem, a julgar pelo seu desempenho carregando tanta coisa. Não deve ser nada tão importante, talvez só um exame de rotina para checar se tá tudo ok. Tanto faz... Eu acho.

Oh, Who Is He? - Narciso Anasui  𓊕Onde histórias criam vida. Descubra agora