Não viaje para um casarão com passado sombrio no meio do nada

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Estou espremido num dos bancos de trás, o canto esquerdo. Minha cabeça se apoia dramaticamente na janela. A paisagem monótona me enjoa — verde, verde, verde. Se até esse momento, eu havia aprendido a gostar de verde, repensei. Chegamos a um ponto em que as placas pararam de aparecer e o asfalto é um sonho distante. Minhas pernas doem. O silêncio é apenas quebrado pelo meu pai, ressonando a falta que faz um adesivo antirronco na saúde mental de uma família; eu também pediria o divórcio no lugar da minha mãe. Ele dorme no banco do carona, Temari dorme na outra janela, Matsuri no colo dela — o que com certeza não aconteceu intencionalmente.

O motorista agora é Kankuro.

— Quer uma pausa? — ele pergunta.

— Estamos no meio do nada.

Ergo os olhos para vê-lo me encarar pelo retrovisor.

— Você rejeitou todas as paradas onde havia um banheiro.

Kankuro é bem intencionado, mas é um cara cis. Eu não estava com paciência essa manhã para explicar a delicada relação entre pessoas trans (especialmente uma pessoa trans gestante) e banheiros públicos. Meu pai entendeu logo. Podemos sempre contar com seu olhar refinadíssimo para os pensamentos sombrios da sociedade.

— Não dá para notar com essa roupa, confia em mim, eu vou contigo — Kankuro insistiu, ele quer que fique registrado.

Hoje meu pai não está com seu Rolex arrogante. Hoje ele é uma pessoa normal com um smartwatch que soa um alarme. Pela terceira vez, Kankuro cala o aparelho antes que o som o desperte.

— É você quem precisa parar — digo.

— Estou bem, estamos quase lá.

Bufo irritado. Não acredito. O casarão fica em outra cidade. Não é a pior viagem do mundo, já fiz distâncias maiores, mas era necessário um esquema de rodízio do volante, ao qual Kankuro sabotava sistematicamente. O Natal caiu como uma bomba sobre nossas cabeças, ninguém estava no seu melhor estado.

Minhas expectativas eram baixas, mas a realidade superou.

Desci do terraço entorpecido, meu corpo se movia no automático, minha mente era barulho, mas discerni-lo era como tentar ouvir embaixo d'água. Meu espírito desconectado vagou pela casa, contemplando o caos ricocheteando nas paredes.

A aliança da minha mãe queimava em meu dedo. Uma confabulação exaltada acontecia à portas fechadas no escritório do meu pai. Minha mãe não teve o mesmo cuidado. Oculto nas sombras do corredor, a vi chorar no telefone com a mãe do Lee. Ótimo, elas não se odeiam, mas isso não respondia qual era a história. Claramente tinham uma.

Do parapeito do segundo andar, olho para baixo. Matsuri e minha vó debatem sobre algo nos pseudo snuff movies* horríveis do meu tio Sasori. Temari está no celular, provavelmente contando a Shikamaru a desgraça de família da qual ele logo a arrancaria, enquanto ele minimiza tudo. Kankuro olha para cima, não precisei chamá-lo. Ele mal parou a minha frente, pus a aliança da mamãe e meu celular — tocando — em suas mãos. Kankuro engoliu em seco, não perguntou nada. O suspiro que soltou o envelheceu meia década. Isso esfaqueou meu orgulho. Eu precisava sair dali; mas antes que pudesse pisar o primeiro degrau, ele me segurou.

— Onde pensa que vai? Sabe como é, se ninguém se mexeu até agora é porque não vão embora. Você dorme comigo hoje. Fica a vontade, já se apoderou do meu guarda roupa mesmo.

Eu já havia recomeçado a me afastar quando ele completou, sacudindo o celular. O nome e o rosto do Lee identificavam a chamada.

— Deixa que eu resolvo, relaxa.

como sobreviver ao fim de ano [GAALEE]Onde histórias criam vida. Descubra agora