Dê ouvidos aos loucos e aos médiuns

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O céu escureceu em pleno fim de manhã. O vento gelado assobia, mas o silêncio é mais alto. Há um incômodo em minha pele, no pouco dela que está descoberto. Ouço um trovão. Não sei se é real ou apenas uma manifestação imaginária do meu estado de espírito.

Eu e Lee estivemos conectados. Plenamente conectados, quando o abraço começou. Forte. Foi como se o mundo tivesse parado para nós. Agora está frouxo. Eu parei de chorar minutos depois de ter começado, antes mesmo do abraço. Lee tomou seu tempo, mas agora está parando também. Funga ocasionalmente. Nenhuma palavra foi proferida desde que me calei. Eu ainda estou sentado com o tronco da árvore como apoio e ele está meio deitado no chão, a cabeça no meu colo, as mãos onde por hora é a casa do que ele acabou de descobrir ser parte sua.

Não estamos mais apoiando um ao outro. Estamos nos encostando. É esquisito.

Me pergunto se ele está ganhando tempo numa posição onde não precisa olhar para a minha cara. Sei que está vivo porque está respirando. Sinto sua respiração. Está acalmando, mas ainda está acelerada. É o único movimento que seu corpo faz. Eu o perdi para algum lugar no caos generalizado no qual transformei a sua mente. Eu sinto, a mata toda sente, a estática descontrolada que ele emana.

Quando me tocou num primeiro momento, o protagonista do nosso assunto respondeu. Eu não disse nada porque Lee não pareceu ter sentido. Acho que isso só será possível para ele em algumas semanas. Eu me perguntei todo esse tempo como seria a sensação. No fim foi uma descarga brutal de ansiedade que ao atingir o pico quebrou numa onda de alívio e capotou numa espiral de culpa. Eu roubei esse momento dos dois. De nós três, na verdade. Então mesmo o inocente recolheu-se a sua forma de silêncio. Não me espanta. Lee está calado, eu estou assustado. Ele sempre aquieta nessas circunstâncias.

Sei que é uma linha de raciocínio empírica, irracional, mas é um vício de pensamento que peguei do Orochimaru. A alma de cientista dele é bem peculiar, para dizer o mínimo.

Quando as primeiras gotas caem, eu cogito que também possa ser minha imaginação. Talvez nada disso esteja acontecendo. Talvez eu não tenha dito nada. Talvez eu nunca tenha entrado no carro. Talvez tenha parado o alarme do celular do Kankuro com tema de Jogos Mortais e voltado a dormir. Talvez Deus não esteja chorando. Talvez eu nunca tenha ido naquela festa e oferecido aquele copo.

Mesmo assim, me preparo para dizer alguma coisa, quando a água parece conduzir um choque elétrico no corpo sobre mim. Lee se põe de pé num pulo. Arregala e fecha os olhos, sacode a cabeça como se quisesse forçar seus neurônios a se comportarem no chacoalhão. Sou grato que ele tenha tido a consciência de apoiar no chão antes de bancar o dublê de filme de zumbi.

Outro trovão. Lee se vira, por reflexo, na direção do barulho. Ok, eu não estou maluco. Vai chover para caralho. Mesmo. Ou Deus está só tentando nos assustar para voltarmos logo ao casarão. Mas não sei porque Deus me ajudaria.

Ele olha para mim. Com preocupação. Medo. Desamparo. Me irrita. Não é esse tipo de olhar que quero despertar.

— A gente precisa voltar — ele diz o óbvio.

Olho para ele. Só olho. Não quero ser rude, não agora. Não é sua culpa, não é com ele que estou bravo. Ajeito minha roupa, Lee se abaixa ao meu lado, mas recuso a ajuda para levantar. Apenas para precisar que ele me segure quando mal me sustento em pé. Me sinto péssimo e não porque levantei rápido demais, porque meu corpo está jogando contra mim ou porque quando pus o pé no chão, o desgraçado doeu. É porque tudo isso faz com que eu me sinta pequeno. Minúsculo. Ínfimo.

Lee diz alguma coisa que não escuto. Ele tenta me mover. Ponho a mão na testa, porque de repente ela parece prestes a cair e estico o outro braço para ele, num alerta.

como sobreviver ao fim de ano [GAALEE]Onde histórias criam vida. Descubra agora