CAPÍTULO 3

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      Me aproximei do parque e a forma com que as árvores eram bem cuidadas levantou uma questão na minha cabeça. A natureza só recebe seu devido valor quando se torna produto turístico? Ou quem sabe ela não tenha valor nenhum, ela é o que é e nós somos o que somos, mas ainda sim seria muito melhor sem as pessoas, imagino. Uma das árvores recebia uma boa iluminação da noite e enquanto me aproximava pude ver iniciais em sua casca, por algum motivo eu quis escrever "Cascas Apodrecem", mas guardei esse pensamento tóxico para mim. Atravessei o lugar e fui até dois pontos de venda que eu avistei, ofereciam maçã do amor mas eu comprei batata frita, eu sei, você deve estar pensando: ele conta relatos como se estivesse insatisfeito com tudo e no final é só mais um romântico que experimentou demais momentos negativos. Talvez seja até verdade mas sobre a maçã é que tenho enjoo por grandes quantidades de açúcar e não fale mal da batata, dá câncer mas é bom. Quando acabei de comer me lembrei da minha tia, ela tinha um grande gosto por esse alimentinho cancerígeno, tivemos bons momentos, quando não brigávamos sobre algo bobo envolvendo questões de ética.

     Distanciei-me daquele lugar e fui andando pelo canto da rua ainda pensando que fim se deu a luz do meu condomínio, já era quase meia noite e o noel aqui não pode ficar sem sua TV 10/10. Como se eu a assistisse, ligava somente para abafar o silêncio do meu quarto na maioria das vezes e nem era mentira. Cheguei no final da rua em frente ao porto da cidade mas não parecia tão grande quanto o anúncio do mesmo no catálogo local, ele não era tão convidativo, alguns pontos estavam sem energia, mas de uma péssima forma parecia com o meu quarto, então eu fui até lá caminhando e esperando ser atacado por qualquer assaltante em potencial. Cheguei até a borda e me escorei no corrimão, olhei aquelas águas escuras e pensei o quão fundo seria chegar até o final nadando, era um pouco alto a distância que eu estava da água e logo veio aquele velho pensamento de pular, eu sempre tenho ele quando se trata de altura, mas naquela situação era especial porque realmente dava de fazer sem morrer e isso, isso era legal. Acendi um cigarro e foquei minha visão para a frente, as vezes o que não é lindo se mostra remédio. Foi então quando eu escutei uns gemidos atrás de mim, tive a impressão que fossem mais gatos, mas dessa vez o vulto me parecia bem maior que um gato, puxei meu canivete do bolso e me aproximei daquela coisa estranha, minha posição era de ataque mas minhas pernas queriam sair dali o quanto antes.

      Por algum motivo não corri, tive a sensação de que aquilo viria atrás de mim e ser morto de costas acabaria com meu resto de dignidade, cheguei perto da coisa que na minha mente era uma fera e no fim descobri que só se passava de uma moça, escorada na parede, quase desacordada. Ela parecia não estar bem e claro que não estava, foi quase um gato gemendo com dor de barriga. Perguntei o que havia acontecido mas não respondeu, só me empurrou achando que eu era algum maníaco, presumi.

      Então me sentei ao lado dela e já que não tive como ajudar, pelo menos a minha presença era uma coisa boa, em seu estado até um velho conseguiria raptá-la. Olhei no chão e vi uma seringa perto do seu pé, acho que já dava para imaginar o que ela andava fazendo por ali e longe de mim dar lição de moral mas achei bem infantil, tá bom, criar opiniões sobre quem você não conhece e como foi parar onde está é ser o nojento do século, mesmo assim achei que a senhora anônima passou do ponto.

     Continuei fumando meu cigarro, me perguntando como situações adversas podem levar diferentes seres ao mesmo lugar, e que naquela situação não era o melhor lugar, nem a melhor situação, mas ficaria chocado se eu te falasse que esse foi o meu melhor Natal.

     Já ia se dando duas horas da manhã e meu sono não vinha, também como viria em um lugar daqueles, as vezes olhava para ela buscando algum sinal de vida mas a moça estava mais concentrada do que eu em seus pensamentos, me olhava raramente, então cansei de esperá-la começar qualquer tipo de diálogo e mesmo que esse não fosse meu forte, puxei um assunto qualquer.

     - Sabia que se você olhar fixamente pra um lugar por mais de 10 minutos, seus olhos conseguem habitar aquele lugar? - eu disse.

     - Digo, a maioria das pessoas só visualizam, enxergar está muito além disso. - disse novamente.

     Esperava que ela comentasse algo, mas apenas me olhou como se buscasse a razão por de trás do que havia ouvido, aquele silêncio já era bem mais que uma resposta apropriada para um observador que se indaga sobre tudo, mas só nessa foi a vez que desejei um pouco mais além daquele final.

Não Me Leia, Julieta Onde histórias criam vida. Descubra agora