CAPÍTULO 4

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      Respirei fundo enquanto a brasa daquele veneno ia se apagando, sentado naquele chão sujo esperando alguma coisa, sentia a necessidade de conversar com ela mas minha voz não a alcançava, somente meus olhos chegavam naquele lugar escuro, não onde estávamos, algum lugar um pouco mais escuro. Então ela olhou para mim como se somente agora que tivesse reparado e encarou de volta, deu um sorriso de canto e finalmente quebrou o silêncio.

      - Você realmente vive o que diz né? - ela disse.

      - Como assim o que digo? - eu a perguntei.

      - "Quando se olha fixamente para à frente e alguma coisa sobre 10 minutos e botas vermelhas", haha. - ela respondeu.

      Aquilo foi a coisa mais inesperada que já havia me acontecido e até pode parecer clichê, duas frases não eram para gerar tanta inquietação e talvez seja idiotice, mas jamais tinha me ocorrido, digo, na maioria das primeiras interações desejadas, ambos os indivíduos buscam agradar um ao outro de forma indireta, criam "espelhos de peculiaridades" por assim dizer, cada assunto comentado é processado e transmitido de volta com gatilhos que fazem a conversa se tornar muito mais atrativa e desejada, e tudo isso, ou seja, essas interações, podem acontecer intencionalmente ou não e no fim é assim que as paixões acontecem. Entretanto o porquê de me causar espanto é que criar um desses espelhos comigo seria uma tarefa complicada demais. Pode parecer complicado de entender, então para resumir, ela entendeu exatamente o que eu tinha dito e tratou no fim o assunto como graça, não para me insultar mas para de alguma forma dizer que profundidade combina melhor com alegria.

    Fechei meus olhos e escorei a cabeça na parede, não sabia mais o que dizer ou talvez surgiu um receio sobre o quê falar, dessa vez era ela a me engolir com os olhos, então fui de encontro pela voz.

      - Não imaginei que chegaria tão longe. - eu falei.

      - Sobre o que você havia dito? Olha, você não é o único que enxerga o mundo, sabia... - ela respondeu.

      - Eu sei, é que, você não parece o tipo de pessoa que refletiria tanto sobre algo. - eu disse.

      - Só porque eu tô suja, em um lugar como este e aparentemente drogada, não significa que eu não pense, sim, eu penso. - ela disse.

      - Poderia ter escolhido pelo menos uma droga que matasse mais devagar. - chutei a seringa.

      - Como seu cigarro? Fumar até seria interessante mas prefiro não ficar com cheiro de bueiro, como esse lugar. - ela respondeu.

      - Pelo menos a sua higiene não é suicida. - eu disse.

      As vezes julgamos demais o comportamento de outras pessoas e não passamos nenhum momento buscando ouvir o que as mesmas poderiam explicar o porquê de estarem aonde estão. Nada é tão simples e certamente a história dela não seria, pelo menos em sua cabeça não era e isso já bastava.

      Me levantei e voltei para o corrimão, já seriam três da manhã eu acho, passei uma perna por cima da barra e depois a outra, sentado me apoiando com as mãos e olhando para a frente. Ela se levantou meio tonta e veio em minha direção, não queria ser grosso por não ajudar naquela situação mas preferi evitar outro empurrão desnecessário, confesso que tive dó, até me lembrar que tinha se drogado. Fixamos juntos o olhar para longe e quando se passou algum tempo ela me perguntou:

      - Acho que dessa vez eu fui longe - ela disse.

      - Sobre? - eu perguntei.

      - Aquilo que você havia dito - ela respondeu.

      - Se eu fosse chutar, diria que você está sempre longe, longe até demais. - eu disse.

      - Isso é bom? - ela perguntou.

      - Depende. Quer ver o quão longe você pode ir hoje? - eu disse

      - Se fosse outro eu diria que isso era uma cantada. - ela falou.

      Então apoiei meus pés em cima da barra e fiquei de pé, olhando para cima buscando a visão de alguma coisa, quem sabe de mim mesmo, enquanto ela me olhava espantada e se perguntando o que esse maluco aqui estava fazendo. Olhei para ela e fiz um gesto com a mão de "vem comigo", é claro que a moça se negou já que naquele momento realmente parecia com a atitude de um maluco.

      - Quer sentir a água? Senhora Anônima - eu perguntei.

      - Você é doido? Tá uns 15 graus! - ela me respondeu.

      - Nunca se sabe se amanhã eu vou ter essa oportunidade de novo. - eu disse.

      - Tudo bem mas eu não vou entrar aí, você é doido. - ela falou.

      Já imaginava que ela falaria algo assim e não estava nos meus planos iniciais ter acompanhante, então, me joguei de costas, a temperatura da água não foi muito boa mesmo, porém a queda e o choque foi lindo, ter todo aquele lugar me consumindo soou até poético, só não seria poesia se um tubarão me consumisse. Olhei para cima novamente e à vi subindo no corrimão se preparando para pular, e naquele instante eu percebi que os meus pequenos momentos tinham se tornado maiores do que jamais foram, e que você foi a ruína mais bonita que me ocorreu.

Não Me Leia, Julieta Onde histórias criam vida. Descubra agora