Província de São Paulo, Brasil – 1868
Narrador
Trovões sacudiram a Província de São Paulo numa noite tempestuosa, de fazer tremer de medo o mais valente dos homens. O vento soprava forte, castigando as janelas da casa grande, jogando rajadas de chuva que lavavam sangue de mais um escravo castigado no tronco da imponente fazenda, e foi quando um raio cortou o céu se jogando contra o solo num barulho estrondoso, que se fez ouvir um potente choro vindo por detrás da porta de carvalho envernizada. Gizelly Bicalho Abreu Alcântara Couto chegava ao mundo, deixando claro a que veio.
Na manhã do dia seguinte os escravos lutavam contra os estragos da tormenta, que havia castigado as plantações de café e partido ao meio o tronco onde vários negros vivam suas torturas diárias, sejam amarrados e açoitados, ou meramente por olhar para o tenebroso pedaço de madeira fincado a frente das senzalas. O feitor gritava com os escravos que substituíam o tronco rachado, por um novo. Era seu prazer pessoal observar os homens trabalharem duramente construindo sua própria forca.
– Feito. O Barão mando chama vossuncê. – O homem olhou de soslaio para o jagunço afirmando com a cabeça, dando as costas para os negros que torravam ao sol do meio-dia, mas não antes de escarrar e cuspir no escravo mais próximo de si.
– O Barão mando me chama? – Januário se fez ouvir falando de cabeça baixa a soleira da porta que dava passagem para o amplo cômodo onde se abrigava o escritório do Barão. O lugar era cru em sua decoração, possuindo somente uma grande mesa e a imponente poltrona, da qual o Barão lançou seu famoso olhar de repulsa ao feitor.
– Quantas vezes tenho de lhe dizer para que não entre em minha casa fedendo a NEGROS! – Januário se encolheu se desculpando. – Vá e me traga uma ama. Mas veja bem, escolha a de melhor aparência e certifique-se de que esteja limpa antes de trazê-la a mim. Agora vá!
Já era noite quando Quitéria deixou seu rebento, e o pequeno Samuel, aos cuidados de Maria na cozinha da fazenda e adentrou pelo quarto resignada. Sabia seu lugar e conhecia bem suas tarefas. Puxou fundo o ar por suas narinas numa respiração profunda e demorada se aproximando do berço onde um anjo de pele alva, cabelos escuros e olhos castanhos, a fitava curiosa. A negra deixou que um sorriso terno adornasse os lábios.
– Pobre criança. – Sussurrou a pegando nos braços a ajeitando ternamente em seu colo. – Que os orixás te protejam da mão do demônio, minha criança. – A negra rogava a seus deuses enquanto sentava no banquinho de madeira puxando um dos seios para uma Gizelly faminta, que os recebeu de bom grado.
Paris, França - 1885
Fazia um frio infernal aquele ano, e as grossas paredes de pedra do internato, só contribuíam para que o corpo esguio e mediano de Rafaella tremesse ainda mais ao caminhar pelo pátio com a carta de seu pai em mãos. Era hora de regressar a Inglaterra, e sim, Rafaella não sabia qual sentimento creditar valor. Não conhecia nada além de sua rotina de estudos e passeios guiados a cidade que pulsava promiscuidade e modernidade. Paris era o recanto dos aventureiros e cheirava a poesia, arte e álcool.
– Madre, não seria uma filha de todo má, caso meu coração pulse implorando para que não me vá daqui? – Rafaella sentia o ar lhe faltar com o aperto em seu peito e nó em sua garganta.
– Minha menina, não te aflijas com tais pensamentos. A preocupação é um sentimento de inquietação, apreensão, temor, relacionado aos pensamentos negativos de algo que possa vir a acontecer no futuro. Eventualmente, pode ser importante pensar em tais possibilidades, mas esses pensamentos somente serão saudáveis se formos capazes ou desejarmos fazer algo positivo com eles. A preocupação torna-se autodestrutiva quando substitui a atitude sábia ou o descanso necessário com emoções amedrontadoras que desvirtuam o presente e nada fazem para nos preparar para o futuro.
Rafaella absorvia toda sabedoria contida nas palavras daquela doce senhora que tanto lhe deu afeto e boas palmadas.– Não sei o que me espera Madre. Meu pai parecia aflito e urgente em sua escrita. – Rafaella mordia o lábio inferior, como sempre fazia quando se perdia em pensamentos.
– Todos nós nos entregamos às preocupações de tempos em tempos minha criança. Qualquer pessoa que leva a sério as responsabilidades não consegue evitar o sentimento de preocupação pelo que possa vir a acontecer. Essa é uma das razões que faz as coisas acontecerem. No mundo, as pessoas que afirmam não se importarem são tolas ou encontram-se em estado de negação, nunca se esqueça disso. – A irmã lhe sorriu e Rafaella suspirou.
Aos 12 anos, Rafaella, foi mandada para estudar com as Filhas da Caridade São Vicente de Paula em um internato em Paris. Seu pai acreditava piamente no poder libertador do conhecimento, e seus filhos não seriam privados disso. A jovem cresceu à sombra dos ensinamentos deixados por Catarina Labouré, se tornando devota fervorosa da santa e adepta de suas práticas de caridade sendo membro ativo na Pontifícia Associação da Juventude Mariana Vicentina. De temperamento doce e postura determinada, Rafaella cresceu se preparando para uma vida na monarquia, mesmo que nutrisse em seu interior um desprezo pela forma como os homens se julgavam acima das mulheres.
Em uma última olhada para a carta, Rafaella puxou sua correntinha, que lhe pendia pelo pescoço, e beijou a pequena medalha que usava como pingente. Havia ganho o mimo em seu primeiro ano no internato, de uma das irmãs que a flagrou choramingando assustada em seu dormitório em uma noite em que os trovões se misturavam aos sons de uma guerra civil que assolava o país.
– O Maria, sine labe concepta, Ora pro nobis ad te conversus est nobis. – Rafaella sussurrava em latim de olhos fechados segurando a Medalha Milagrosa de Nossa Senhora das Graças.
Lisboa, Portugal - 1885
– És um casa nova irremediável. – A mulher zombava em tom íntimo.
– E tú, a senhora de meus pensamentos mais inquietantes. – O homem retrucou lhe segurando a face pelo queixo a roubando um beijo.
– Vamos Renato, deixe de namoricos ou o trem partirá sem nós! – O outro chama por seu amigo que o olha com um sorriso faceiro no canto dos lábios.
– A caso estas com ciúmes meu velho amigo? – Zomba Renato pegando sua mala do chão. – Aguardo ansiosamente por nosso reencontro, minha senhora. – O galante homem a beija a mão.
– Vá logo Renato, antes que Alejandro roube o privilégio, de nós mulheres, e tenha um filho bem aqui, a nossa frente.
– Juliette Freire, vosso humor me aquece a alma, ao mesmo passo em que teu corpo a minha cama. – Renato faz um último galanteio e embarca no trem rumo à Inglaterra. Vosso pai o chamava com urgência e a vida de festas e mulheres ficaria para trás, ou não...
No dia seguinte... |
Sebastião estava impaciente, vez ou outra, puxava seu relógio do bolso consultando as horas.
– Se acalme homem! Logo ela chega! – Renato ria de seu velho pai, agora totalmente calvo, que tremia em ansiedade dentro de sua veste de linho branca impecavelmente bem passada. O homem estava pronto para ralhar com filho quando teve sua atenção roubada pelo soar do apito do trem. Renato estava chegando, ele finalmente teria sua princesa nos braços.
Rafaella se mantinha silenciosa enquanto o pai explicava a razão da inesperada reunião em família. Problemas em terras estrangeiras. Aparentemente os barões do café não estavam tão auspiciosos a modernidade sobre trilhos e causavam sérios problemas ao progresso dos trabalhos na província de São Paulo. Como relações públicas, Sebastião seria enviado ao território desconhecido para solucionar o problema e deixaria A
Renato responsável pela sede, em Londres.Renato era jovem, no auge dos seus 18 anos, havia estudado economia, falava Português, Francês, Italiano, além do próprio idioma, é claro. Era um pouco mais alto que Rafaella. Os gêmeos idênticos possuíam os mesmos traços harmoniosos de face lisa, mesmo nariz e lábios convidativos. Quem não os conhecesse, poderiam até os confundir, se não fossem pelos cabelos castanhos, longos e de pontas encaracoladas de Rafaella, enquanto que Renato os usava num corte curto num penteado para o lado. Os olhos, profundamente verde de Rafaella, eram sua marca registrada, bem como seu sorriso acolhedor e acalentador, enquanto que o irmão era conhecido por sua lábia galante.
Era isso Sebastião iria para o Brasil, e mudaria a vida de sua família para sempre...
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Eu sei que na vida real a Rafa e o Renato só tem o tamanho da cabeça parecido mas na fic eles tem quer ser mais parecidos.
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Lies - Girafa
RomanceBrasil, 1886. Em meio ao progresso ferroviário, a pressão inglesa e aos movimentos abolicionistas, duas famílias firmam um acordo vantajoso para ambas. Gizelly e Renato iriam se casar. Envolto a trocas de cartas, tramas e complôs, uma mentira se to...