Narrador pov
S/n se revira novamente na cama, em uma, ou várias tentativas falhas de ficar confortável e com sono.
-Que merda! - resmunga e se levanta.
Ela tinha plena consciência de que estava prestes a ter uma recaída, e precisava se distrair antes de deixar isso realmente acontecer.
Ligou o visor de seu celular, 00:54h. Jogou o aparelho na cama e foi ao banheiro do seu quarto, onde passou mais de dez minutos sentada na borda da banheira, passando água fria por seu rosto e tentando não chorar. Não se permitiria chorar.
Foi tirada de seus devaneios e lamentações com uma voz que conhecia muito bem.
-Desculpa, mãe. Não vai rolar de novo, tá legal? Só para com isso - conseguiu ouvir claramente o que sua vizinha falava do quarto dela, com uma inconfundível voz de choro.
S/n e seus pais se mudaram para o condomínio quando a garota completou seis anos. Desde lá, seus vizinhos são os mesmos, ou os que ela se lembrava. Mas tem uma, em especial, que tem a sua idade, dezesseis anos, e mora na casa da direita. As duas cresceram lado a lado, mas nunca se viram muito e, de acordo com os pais de S/n, a menina não sai de casa, assim como ela, o que explica muita coisa.
S/n sabia que o quarto das duas são parede com parede, porque frequentemente escutava a vizinha com clareza, o que vinha aumentando sua vontade de conhecê-la a cada dia. Sabia que o nome dela é Hailee, e que não tem a melhor relação do mundo com os pais, porque sempre a escutava brigando e às vezes chorando, assim como a outra também devia escutar ela.
Seus amigos, mesmo que por brincadeira, sempre a alertaram sobre o grande potencial de se apaixonar pela vizinha, e ela não discordava, e só não admitia que isso já tinha acontecido porque não a conhecia direito, apenas pelo que vazava pelas paredes, literalmente.
S/n foi até a sacada de seu quarto, que é aproximadamente dois metros de distância da sacada da outra.
-Ei - sussurra ao perceber um pedaço da cortina aberta, vendo a menina sentada no chão, escorada em sua cama. - Hailee!
-Oi? - ela aparece na sacada, com seus olhos ligeiramente inchados, indicando um recente choro. - Precisa de ajuda? O que houve?
-Me desculpa te incomodar, e tão tarde, mas... - ela parou, esperando algum milagre ou intervenção divina de que surgisse uma desculpa plausível para o que estava fazendo. - Você não quer sair daqui?
-O quê? - ela fez uma cara de confusão, fazendo a outra se arrepender imediatamente do modo como se expressou.
-Quer dizer, não você sair daí, mas nós duas irmos dar uma volta, ou só tomar um ar no parquinho do condomínio, sei lá... - ela cruza os braços e sente seu rosto esquentando, agradecendo mentalmente pela pouca claridade do local, que vinha apenas de um abajur no quarto de Hailee, e não deixava a menina perceber seu rosto corando por conta da vergonha. - Eu sei que isso pode parecer um pouco estranho, mas eu vou ser bem honesta com você. Eu te escutei com sua mãe, e eu também não estou muito bem, e acho que nós poderíamos nos conhecer, e eu adoraria te fazer companhia, e... te ter como companhia também. Sinto que, de certa maneira, iríamos nos ajudar, uma distração...
-Eu também adoraria - interrompe a outra ao perceber seu nervosismo. - Eu vou colocar um casaco e te encontro aqui na porta, tá bom?
-Tá - Hailee entrou de volta, e S/n soltou toda a respiração que acabara de perceber que estava segurando.
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As duas tinham certeza de que já tinha passado de quatro horas da manhã, mas não tinham como provar isso, nenhuma das duas lembrou da existência de seus celulares ao saírem de casa.
Elas estavam deitadas de barriga para cima no gramado do campo de futebol que o condomínio tem, fingindo prestar atenção em estrelas que não estavam ali, mas que o nervosismo das duas inventava para não terem que se encarar em uma proximidade tão arriscada.
Já tinham conversado sobre muitas coisas aleatórias e até trocado histórias sobre como era morar no mesmo condomínio.
-E teve uma vez... - Hailee começa, segurando a risada. - Que seu gato fugiu e eu encontrei ele escondido no meu armário. Fiquei com vergonha de ir falar com você para devolver, me apeguei e fiquei cuidando dele por duas semanas, até ele conseguir escapar de volta.
-Eu não acredito - S/n finalmente a encara, mas com um misto de diversão e indignação em seu rosto. - O Voltaire estava na sua casa esse tempo todo?
-Me desculpa - começa a dar risada da situação, enquanto a outra ainda processava a confissão.
-Eu fiquei desolada, Hailee! - se deita de volta. - Achava que ele tinha ido pra rua e algum gato maior batido nele. Ou sei lá, que ele tinha se perdido. Aquele tonto nunca tinha saído da porta pra fora antes.
-Me desculpa, de verdade - para de rir aos poucos, e em um movimento automático de carinho, coloca a mão delicadamente na bochecha da vizinha, o que faz as duas se deitarem de frente uma para a outra, e ficarem incrivelmente confortáveis com isso.
-Hailee... - ela sabia que estava prestes a arriscar perder o clima bom e a confiança que construiu com a garota, mas também sabia que uma hora teriam que entrar no assunto que levou as duas a estarem ali. - Você está bem?
-Eu? - ela parecia um pouco surpresa, mas sabia o motivo da pergunta.
-Só tem nós duas aqui - nota a outra desviar o olhar, e então decide que precisava ser um pouco mais direta. - Sabe que nossos quartos são parede com parede, né? Eu sei que tem algo errado, e não é de hoje.
-Na verdade - solta um grande suspiro, tentando convencer a si mesma de que talvez seja bom falar com alguém sobre aquilo. - A situação lá em casa não é das melhores. Meus pais brigam muito e minha mãe é frustada com isso, e sempre, sempre, desconta em mim. Não importa o quão pequeno seja a coisa que eu fiz e que não agradou ela. E meu pai é igual, mas ele fica menos em casa.
-Eu sinto muito por isso - diz enquanto ajeita o cabelo dela, tentando deixá-la confortável ao perceber que ela estava quase chorando por conta da conversa. - Lá em casa é tipo isso também. Minha mãe tem depressão, e eu nunca cresci com muitas demonstrações de amor. Então acredite, eu estar aqui com você significa muito. E mesmo que nós não nos conheçamos direito, eu me preocupo com você e odeio quando eles te tratam assim.
-Digo o mesmo a você - ela já não se importava em descer os olhares aos lábios de S/n sem muita sutileza, gostava da companhia da outra e se sentia genuinamente atraída, e esperava que isso fosse notado. Talvez a conversa pudesse ficar para outro momento. - Eu poderia te beijar agora, sabia?
-Eu poderia ter te beijado há muito tempo, sabia? - imitou o gesto da morena, e não tinha ideia se estava tendo tanta coragem assim por conta do horário, ou se só não aguentava mais esperar. Talvez as duas coisas, mas ela não estava muito preocupada com isso.
Não sabiam quem tinha tomado a iniciativa, se deram conta de terem se aproximado apenas quando seus lábios já estavam colados e os olhos confortavelmente fechados, com as duas delicadamente aprofundando o beijo, sem pressa alguma.
Estavam apenas passando para a outra todo o sentimento que iria construir uma história linda a partir daquele momento. Poderia ser uma história que não duraria para sempre, ou duraria apenas por aquela noite, não sabiam, mas era a história delas e, no momento, apenas isso importava.