VII - Uma lâmina amiga

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Por todo o dia seguinte Urd não conseguia deixar de pensar em Gawain. A leveza e mistério do homem lhe causavam necessidade de busca, de conhecê-lo mais a fundo, mas não imaginava quando poderia encontrá-lo de novo. Talvez invejasse o modo como ele parecia livre, falava e se portava livremente, quase como as afluentes de um rio nos entremeios de um cenário selvagem.

— Por que está com essa cara? — Urd largou as ferramentas e olhou para cima, o gelado da pedra preciosa tornou-se mais claro em sua mão.

— Não é nada — murmurou, encarando Raykk com sombriedade. — O que está fazendo aqui? Achei que não iria mais querer me ver.

— Voltei porque sou um idiota, você sabe — ele soltou um riso afetado e se curvou sobre a mesa, cheirava a suor e orvalho de ciprestes. — Ficou em casa chorando por mim a noite toda? — Provocou, tateando as pedras de hematita recém-polidas, mas Urd o acertou nas costas da mão com um tapa.

— Conheci um cara ontem — murmurou.

— Um cara?

— É Raykk, um cara, um cara bem interessante.

Pegou-se sorrindo, sorriso este que Raykk devolveu com uma careta inquisidora, analisando-a enquanto Urd guardava as pedras em um baú de ferro.

— E desde quando gosta de caras? Desde quando fica interessada assim?

— Ele era diferente, só isso, não estou propriamente interessada, pelo menos não da forma que sugere — suspirou.

— Mas está, e se deixou você interessada não deve ser uma boa pessoa.

Urd não respondeu, terminando de guardar as ferramentas. Estavam no galpão dos fundos da casa, era fim de tarde e a bile já queria lhe subir à garganta, fez uma careta ao engolir, expondo-se a Raykk.

— Você está bem? — Ele tocou sua mão, mas esquivou-se do toque. — Sabe que sempre pode ter uma solução.

— E minha solução seria me casar com você? Não, não vai rolar — ele parecia magoado quando olhou para ele sorrindo com escárnio. — Não vou me casar com ninguém, vou assumir a responsabilidade porque é algo que devo fazer, e quando Dalibor for velho o suficiente vou embora deste lugar.

— Planeja mesmo assumir a responsabilidade? E o que fará depois? É desonroso não ter filhos e uma casa, vai sujar o nome da família da mesma forma.

Urd Lewis bufou, olhando para ele com raiva.

— E o que acha que devo fazer? Por que diabos eu deveria fazer alguma coisa por essa maldita família? Quer tanto assim uma oportunidade pra enfiar esse pau em mim?!

Raykk se curvou sobre a mesa e segurou-a pela garganta, a diferença de altura mostrou-se mais acentuada, os anos de treinamento no exército foram expostos pela habilidade com que comprimiu o ar, deixando difícil para ela respirar.

— Jamais repita isso Urd Lewis, eu sou seu amigo, eu não falo sobre essas coisas com você — rangeu os dentes.

— Não fala Ray? — Urd estava quase ajoelhada sobre a mesa, segurando o pulso de Raykk com ambas as mãos, mas sem fazer força para ele a soltasse, absorvendo o êxtase da dor e do risco de quase morte. — Não fala, mas é isto que teremos que fazer se me casar com você, vou ter que deixar que enfie esse pau em mim e que me engravide, então pelos próximos nove meses vou ser devorada viva e pelo resto da vida vou carregar a responsabilidade sobre ter gerado outro ser humano, e você sabe bem o que penso sobre isso, sabe muito bem o que aconteceu com o último homem que tentou.

Raykk segurou-a com mais força, arregalando os olhos na sequência, então quando ela arfou, a soltou assustado. Parecia inconsciente de sua raiva e de sua força, olhando-a perturbado enquanto dava vários passos para trás.

— Urd, eu... — a voz dele falhou.

— A verdade Raykk é que isto não me surpreende, pois é o que bons homens fazem, eles se aproximam de você e são bons a preço de nada, mas internamente planejam o dia em que serão recompensados por sua bondade. Bons homens precisam ser alimentados como animais de uma exposição, pois se ficarem famintos irão morder-te e arrancar parte por parte, porque este é o preço de sua ínfima bondade — Urd limpou um filete de saliva que escorria pelo queixo com as costas da mão. — Não existem homens bons Raykk, não neste lugar onde não há diferença entre homens e deuses, então não finja que não faz parte de sua natureza me esfaquear com a mesma lâmina que usou para me defender, não finja que nunca esteve aguardando por uma recompensa! — Urd berrou na última parte e jogou um alicate na direção dele, a ferramenta sobrevoou o ar e passou raspando por seu supercílio quando ele se virou minimamente para desviar dela.

Um filete de sangue escorria pelo rosto do jovem quando se virou para ela outra vez, e Urd sentiu o bolo de lágrimas queimar na garganta outra vez, impossibilitado de sair.

— Urd eu... — a jovem ergueu a mão, fazendo sinal para que ele ficasse calado.

— Desapareça da minha frente! — Rugiu e arremessou uma pedra desta vez, mas esta não o acertou, ela quase não conseguia respirar.

Raykk não parecia disposto a dizer mais nada, dando-lhe as costas e saindo do lugar. Urd espalmou a mesa e jogou todas as coisas pelo ar, a mágoa queimava-lhe como ferro em brasa. Queria verdadeiramente que Raykk não estivesse mentindo, queria não ter de dar nada em troca, por que as mulheres sempre pagam um preço pela bondade que lhes é oferecida? Sentiu-se mais amaldiçoada nquela hora do que em todas as outras de sua vida, estremecendo sob a constatação de sua própria desgraça, então despencou sobre os joelhos, sentindo os pedaços de madeira cortando-lhe a carne, faiscando em fricção com os ossos dobrados.

— Urd?

***

N/A: Raykk mostrou as asinhas! Odeio ele, mas adorei escrever esse capítulo, confesso ;-;

Espero muito que tenham gostado!

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Até a próxima!

De Trevas e Sangue  [CONCLUÍDO]Onde histórias criam vida. Descubra agora