III - Então conquiste a honra

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Urd foi dormir sem jantar, acordando com apetite de dois leões adultos, mas com a bravura de uma leoa que sai para caçar. Não conseguira olhar nos olhos da própria mãe depois da briga, e acordou muito cedo para comer em paz, procurando pela cozinha os restos do jantar malfadado e engolindo carne e pão como se engole água, sem prazer, apenas para manter o maldito corpo de pé. O fato é que não sentia prazer em muito tempo, mantendo-se viva com propósito de nada, dizendo a si mesma que estava ali pelo irmão e só por isso. Perguntava-se quantos anos restavam até que o garoto se tornasse um homem e tirasse dela a única coisa que tinha, o desespero a fez sorrir.

Ouviu passos e se virou, encontrando Raykk entrando na cozinha. O rapaz era uma cabeça mais alto e tinha uma barriga saliente na camisa de tecido fino, usava sob o uniforme do exército que estava aberto, os longos dreads caiam longos pelos ombros, presos no alto da cabeça, e exibia os lados raspados. Os lábios bonitos e cheios curvaram-se num sorriso quando se aproximou, pegando uma maçã da fruteira e recostando-se no balcão de corte para enxergá-la a uma distância de respeito.

— Bom dia senhora — ele mordeu a maçã, meneando a cabeça com deferência.

— Não me chame de senhora, não sou senhora de coisa nenhuma — murmurou com a boca cheia, o corpo curvando-se ainda mais sobre a mesa onde apoiava-se.

— É mais líder do que muitos, do que todos, só não percebeu ainda.

— Um líder decide sobre si próprio, não espera sentado por sua sina por não ter como mudá-la.

— E por que espera? Devia fazer algo sobre isso.

— Madd me disse a mesma coisa, mas por que não consigo enxergar o que pra vocês é tão fácil de ser visto?

— Se me permite dizer, o amor nos deixa cegos senhora. Muitas vezes imaginamos que as palavras das pessoas que amamos são leis que condicionam nossa vida e nossas decisões, leis sagradas e que não devemos nunca ir contra, mas nem sempre o que as pessoas que amamos nos desejam, é o que devemos querer — ele se aproximou de Urd, colocando sobre a mesa uma gargantilha com uma Pedra-da-Rosa. — As palavras daqueles ao nosso redor devemos levar como conselhos, não como regras, as regras e direções devem surgir de nossos próprios desejos, de nosso próprio coração, não podemos ser felizes seguindo os ideais de vida de outra pessoa.

— E está dizendo isto...

— Estou dizendo isto porque não quero que seja presa por matar seu marido — ambos riram, mas o riso de Urd foi distante, continuava encarando a pedra. — Então se deseja, conquiste a honra, ela nunca será lhe dada como um mísero presente de casamento.

Depois que Raykk deixou-a voltou para o quarto e tirou as roupas, ficando somente com a camisa e a roupa íntima, afundando sob os cobertores. O peso das inúmeras camadas de pele de animal a deixava confortável, caindo como um abraço sobre o corpo trêmulo e anestesiado pelo súbito estado de depressão. Passou o dia todo na mesma posição, vez ou outra acordando de um sono conturbado só para cochilar outra vez, até que ficou tarde e decidiu se arrumar e sair antes do dia do abate.

Era quase seu último dia de liberdade e decidiu aproveitá-lo no lugar onde sempre ia, buscar confusão na cidade e se tornar o mais desprezível possível. Não era porque tinha aceitado que estava em concordância com toda a maldita situação.

De Trevas e Sangue  [CONCLUÍDO]Onde histórias criam vida. Descubra agora