Uma semana se passou e Gawain foi vê-la todos os dias. Agora conseguia se colocar de pé e não precisava mais da médica ou da ajuda de Gaye, o que a deixava mais confortável. Passava todo o tempo no quarto de hóspedes onde fora primeiramente alocada, mas aquela era sua última manhã amanhecendo entre aquelas paredes.
Urd estava prestes a voltar para casa e isto dava um pequeno frio na barriga, as mãos estavam suadas, mas tudo era intensificado por outro motivo. Teria de almoçar com o rei e a rainha, faltavam apenas alguns minutos para virem buscá-la, estava pronta e esperava sentada pacificamente em uma cadeira que a permitia ver além da janela. Ainda não conseguia deixar de pensar em Madd, iria vê-la assim que saísse dali, ao menos para se despedir. Fora egoísta num primeiro momento, sabia que a garota nunca a seguiria, sabia que era quase impossível algo assim dar certo, ainda mais para uma camponesa.
Nos últimos dias a companhia de Gaye ajudou-a muito a ignorar os seus problemas, a princesa era doce e lia para ela todas as noites, bem diferente do que julgava conhecer sobre princesas. Estava abatida com a morte do noivo, um duque de Mastfall com quem noivara aos doze anos. Ele havia tido consciência do plano de assassinato antes de Urd chegar ao local, mas não foi tão eficiente, o corpo dele estava em um estado bem sangrento quando foi encontrado em meio ao labirinto.
— Urd? Vim buscá-la — Gaye cantou da porta, usava um vestido de camurça preto desta vez, com um pingente dourado caindo entre os seios no decote em "V" que mostrava um tanto bom de pele, Urd se levantou para cumprimentá-la.
— E se o rei mandar me prender? — Murmurou atordoada e a princesa riu.
— Meu pai não faria isso, ele é uma péssima pessoa, mas creio que esteja verdadeiramente em dívida com você.
Gaye parou à sua frente, segurando-a pelos ombros e colocando-se na ponta do pé para beijar sua bochecha.
— Certo.
A jovem entrelaçou seus braços e começaram a caminhar, era difícil andar depressa porque ainda sentia dor, apesar de não chegar a artéria, a facada havia sido bem profunda. Os corredores do palácio eram largos e arejados, com janelas de vidro que iam do chão – revestido por um tapete estampado – ao teto. As paredes cinzentas fechavam-se sobre as duas como muralhas, haviam quadros das paisagens de Rosefall por todos os lados, até chegarem ao hall. O segundo hall era uma exibição artística de primeira, com inúmeros púlpitos de vidro com vasos de cerâmica e objetos históricos como pergaminhos fechados em caixas de vidro e artigos de guerra. O primeiro hall – o de entrada — ficava a um corredor dali, podia-se ver a porta de saída e Urd lutou contra a vontade absoluta de correr até lá.
Mas Gaye virou para o outro lado, onde havia outra saleta e outro corredor alto. A saleta era enfeitada por diversas plantas naturais do reino, um cheiro de vegetação subia pelo ar. No fim do corredor havia portas duplas imensas, vigiadas por dois homens fardados e armados. Eles cumprimentaram Gaye com uma reverência rigorosa, mas mal olharam na direção de Urd, apenas abriram as portas e permitiram que as duas passassem. A sala de jantar se parecia com um templo, haviam janelas grandes e nos cantos diversos vasos de plantas, uma mesa de vidro com pés de bronze encostava-se na parede, onde ficavam alguns pratos com parte da refeição, uma mesa longa de carvalho encontrava-se no centro de tudo, com cadeiras de espaldar alto ocupadas por outras três pessoas.
Urd sentiu-se intimidada ao olhar para frente, o homem sentado na cabeceira da mesa a olhava com acentuado desprezo, em seu lado esquerdo havia uma mulher com uma tiara na cabeça e do outro estava Gawain, que encarava as próprias mãos cruzadas e que parecia tremendamente desconfortável. Urd fez uma grave reverência apesar da dor e o rei suspirou, apontando para as cadeiras, seu rosto era de poucos amigos.
— Imaginei que a salvadora fosse uma dama de fato — ele murmurou.
— Pai! — Gawain rangeu os dentes mediante o enfadado comentário.
— Sinto muito, mas para mim esta não é a bela dama que me descreveu.
— Amom querido, seja mais delicado — o homem alisou a barba volumosa enquanto Gawain se levantava e puxava uma cadeira para Urd se sentar ao lado dele e outra para a irmã do outro lado da mesa, que se sentou ao lado da rainha.
— Por favor papai, seja mais educado, Urd salvou minha vida — murmurou Gaye, segurando o garfo dourado como se segura uma arma.
— Tudo bem Alteza, as pessoas em minha vila dizem coisas assim o tempo todo — o rei a interrompeu.
— Está querendo me comparar com os camponeses garota? — Ele olhou-a intensamente com seus profundos olhos negros.
— De maneira nenhuma pai, Urd só quis dizer que não se ofende com sua precisa observação — murmurou Gawain com desdém, apertando o joelho de Urd sob a mesa para confortá-la.
O rei bufou como uma criança e a rainha sorriu para Urd com comiseração, ela tinha um rosto redondo e a pele brilhante e bonita, olhos castanhos que cintilavam como gemas raras sob os raios de sol que vinham da claraboia. Os cabelos cheios caiam pelos ombros e cobriam parcialmente o decote modesto que acentuava o volume dos seios e a curvatura do corpo com dimensões semelhantes às da filha. Urd queria agradecê-la por a receber, mas não se viu no momento de fazê-lo, deixando que a família discutisse baixinho sobre formas de a tortura se tornar moderada.
Mas, não suportando mais, interrompeu-os.
— Perdão Majestade, mas gostaria de dizer-
— O quê? O que gostaria de dizer? Deseja a mão de minha filha em casamento?
Ele grasnou como um pato numa tentativa mal sucedida de risada e Urd pensou em responder "Sim Majestade! Exatamente! Afinal o que mais eu poderia desejar?!".
— Gostaria de dizer que a salvei sem pretensão alguma de ser recompensada e que fico feliz que ela esteja bem agora, não há motivos para me recompensar.
— Ah, por favor! Não seja ridícula! Salvar uma pessoa sem desejar ser recompensada por isso? Me conte uma história mais crível.
— Amom cale a boca! Seja mais respeitoso com nossa convidada! — A rainha bufou.
— O que está fazendo Valerie? Acha mesmo que pode falar comigo desta forma na frente de meus filhos e de uma mísera camponesa?
O autocontrole de Urd enfraqueceu, não conseguiria passar mais um minuto ali, o sangue já lhe subia à cabeça. Levantou-se num sobressalto e empurrou a cadeira, que arranhou o piso recém-encerado e quase caiu para trás, oscilando no ar por um momento antes de parar com um estampido. Os três voltaram-se para ela, que tinha as sobrancelhas franzidas, mas tentava-se abster do ódio, mas este lhe gotejava por todas as extremidades do corpo.
— Não quero recompensa alguma Majestade, uma mulher como eu não merece ser recompensada e, com todo o respeito, não permanecerei mais nesta sala, pois não sou bem vinda — ela olhou para ele, o lábio inferior do homem tremia. — Fico feliz que a princesa esteja bem e sinto por ficar tanto tempo, então estou indo agora e não preciso que me ajude com um grão sequer, posso cuidar de minha família como sempre fiz, não estamos aceitando esmolas — ela curvou-se numa reverência dura e sem respeito algum. — Com sua licença.
Urd virou-se, mancando na direção da porta, enquanto o rei tentava cuspir alguma palavra às suas costas.
***
N/A: Eu amo esse capítulo!!!!!!!!
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De Trevas e Sangue [CONCLUÍDO]
Fantasy[POLÍTICA] [DRAMA] [BAIXA FANTASIA] [LGBTQIA+] [+18] Quando a perna de seu pai explodiu há seis anos, Urd Lewis foi obrigada a tomar as rédeas da família para que pudessem continuar vivendo. Em um mundo imperado pelo machismo e a opressão, a gar...