Urd Lewis passou tanto tempo na forja que seus olhos arderam como que em chamas quando desviou o olhar das lâminas que afiara durante toda a tarde. Não conseguia acreditar em sua sina, não conseguia dormir sabendo que seu futuro não lhe pertencia, e por um momento desejou a morte.
Em Rosefall as mulheres eram propriedade de seus pais e depois de seus maridos. O reino era governado por um Alto-Rei e um Primeiro Ministro, mantendo-se assim a figura da família real e a "democracia", mas no fim das contas as leis do rei sempre valeriam mais. A última pessoa a ser eleita no cargo de Ministro fora a Senhora Callis, assassinada em uma casa de leilões ilegais, não houve justiça. Era uma das poucas mulheres que tinha o domínio do próprio título de posse, o documento que garantia o poder de escolha da mulher e que normalmente ficava nas mãos de qualquer figura masculina de sua família. Callis era casada com uma mulher do Norte, e desde sempre a união não fora bem vista, apesar de ser sobrinha do Rei e ter sido eleita por voto pelo povo. Urd ficara muito abatida com a morte dela meses atrás, pois a histórica nomeação podia ter significado a liberdade de todas as mulheres do reino.
— Urd? — A voz doce e conhecida lhe chamou da porta, o sol da tarde derramava brasas douradas ao redor da silhueta de Madd, que tinha os cabelos soltos.
— Está indo pra casa? — Largou as facas, limpando as mãos numa flanela.
— Vou ficar com meus pais até o baile, você estará lá?
— Se eu não me matar estarei lá.
Madd caminhou até ela e segurou sua mão, os dedos da moça tremiam.
— Eu sinto muito Urd, queria poder fazer algo para mudar isto.
— A última que tentou está morta agora, creio que não há nada que possamos fazer.
— Tenho certeza que vai arranjar alguma coisa, não acredito que não há nada que possa fazer, você sempre arranja uma solução pra esse tipo de coisa, ao contrário de mim que vive à sombra dos irmãos e que não tenta sair disso.
— Não se culpe Madd, não é como se houvessem muitas opções. Mas saiba que se eu conseguir, irei até você mesmo no submundo, irei até você e lhe trarei de volta comigo.
Madd suspirou pesarosamente, as olheiras sob os olhos densos ficavam ainda mais evidentes à meia-luz.
— Boa sorte — a garota abriu os braços e esperou pelo abraço de Urd que não veio, então abraçou o próprio corpo sob o olhar culpado da Jovem-Mestra.
— Espero que alguém bom lhe escolha.
Ela sorriu mas não disse nada, e Urd não se ofendeu, sabia que não havia nada a ser dito. Ambas não desejavam ser escolhidas por quem quer que fosse, até mesmo um príncipe seria renegado se assim fosse permitido. No entanto, apesar de amar Madd, Urd jamais ficaria com ela, mesmo se as leis de Rosefall fossem outras. O verdadeiro motivo para almejar a liberdade era porque queria um futuro brilhante fora dali, um futuro com riqueza própria, com cavalos e armaduras, um futuro servindo ao exército que escolhesse. Não haviam muitas ofertas boas para mulheres solteiras e aquele era seu último baile oficial, depois seu futuro seria – se não fosse escolhida – escolhido por seu pai.
Após a ida de Madd, contemplou o poente sozinha, vendo o sol baixar nas montanhas antes de seu irmão aparecer, descendo saltitante o declive suave que separava o celeiro do castelo. Dalibor saltou em seus braços quando estava perto o suficiente para ser pego, agarrando-se ao pescoço da irmã mais velha e beijando-lhe o rosto com adoração, fazendo o coração dela queimar com tanto amor.
— Ei garoto, não te vi o dia todo — ela apoiou o peso dele na cintura, afastando a cabeça um pouco para poder vê-lo.
— Eu e a mamãe fomos ao templo — ele fungou, o cabelo crespo estava enfeitado por gramíneas e as mangas bufantes da blusa estavam manchadas de lama.
— Ah é? A mãe não me avisou que iriam sair.
— Ela disse que foi rezar pra você criar juízo.
Urd não pôde conter a gargalhada estrondosa que tirou um olhar confuso do irmão.
— Que bom, porque isso é algo que não tenho — colocou o irmão no chão, procurando pelo cadeado nos bolsos para trancar o portão.
Estendeu a mão para ele, o menino mal chegava ao seu quadril, pequeno demais para os seis anos. O garoto havia sido uma gravidez inesperada, nascendo dezessete anos depois de Urd, o que o tornava jovem demais para cuidar das coisas do pai moribundo. A moça sentia certo grau de inveja dele, da liberdade que tinha e que nunca seria obrigado a abandonar, porque num mundo como Rosefall ser homem era o maior prêmio que se tinha. Naquele reino maldito uma mulher não podia escolher o marido, a hora de ter um filho, o que comer no jantar, até mesmo estar usando calças já era um privilégio grande demais.
— Você vai voltar pra me ver depois que for embora? — O garoto apertou a mão dela mais forte, como se estivesse com medo.
— Claro que vou, e eu não vou embora, ninguém ia querer uma pessoa igual a mim como esposa — soltou um riso afetado, mas pareceu acalmar o irmão.
— Ainda bem, porque o pai e a mãe são uma merda — teve de se conter para não rir.
— E você é jovem demais pra falar essas coisas!
Agarrou-o pela cintura, girando-o no ar, a alegria a deixando e o cansaço do dia cheio amortecendo o corpo, virando uma letargia aguda, uma fraqueza abrupta que a obrigou a colocar o menino no chão. A mãe surgiu na porta da cozinha, o cabelo longo preso num turbante, alguns cachos escapavam pelos lados do tecido, a luz amorfa da lâmpada da cozinha iluminava parcialmente o rosto abatido da mulher. Ela beijou o filho na bochecha quando o menino passou por ela para lavar as mãos antes do jantar, mas Urd parou quando percebeu o olhar dela, e Mina Lewis esticou a mão para limpar o rosto da filha com a ponta do pano de prato.
— Olhe só pra você, repleta de fuligem — murmurou cansada, fazendo Urd revirar os olhos.
— Estava trabalhando, não há muito que eu possa fazer — sorriu para a mulher que não se conteve e sorriu de volta.
— Alimentou seu pássaro? Aquele maldito berrou o dia todo porque não foi vê-lo.
— O Dragomir não é um maldito, e mandei Raykk alimentá-lo, não tive tempo de ir vê-lo pois tivemos trabalho demais.
— Se for escolhida vai ter de encontrar um lugar para ele, não há meios de levar um animal selvagem para a casa de seu marido, a menos que seu marido seja Raykk, porque aquele idiota faria quaquer coisa por você.
Urd fez uma careta de escárnio.
— Não me tire o apetite, muito possivelmente não se livrarão de mim tão fácil.
— Filha, não queremos nos livrar de você, é apenas a tradição.
— Então abaixo às tradições! — Bradou, erguendo as mãos no ar como um líder de culto. — Viverei apenas o suficiente para fazer com que este império desabe!
A moça sentiu a ardência na bochecha antes que pudesse continuar, os olhos se arregalaram e baixaram com decepção e repulsa. Mina Lewis jamais se esqueceria das chamas nos olhos da filha, chamas que a fizeram dar um passo para trás, como se visse a um estranho.
— Não culpe as tradições, nem diga coisas que podem acabar com esta família, pois seu pai poderia ter se livrado de você há muito tempo, mas foi bondoso para aguentar tudo calado.
— Bondoso, claro — Urd ergueu a manga da camisa, exibindo o antebraço marcado com cicatrizes de queimadura, a pele nova e brilhante denunciando o local exato onde fora escaldada com água fervente.
— Nós apenas queremos o melhor para você! — A mulher puxou a manga da blusa da filha para baixo outra vez, sem conseguir olhar.
— Eu também, apenas quero o melhor para mim.
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De Trevas e Sangue [CONCLUÍDO]
Fantezie[POLÍTICA] [DRAMA] [BAIXA FANTASIA] [LGBTQIA+] [+18] Quando a perna de seu pai explodiu há seis anos, Urd Lewis foi obrigada a tomar as rédeas da família para que pudessem continuar vivendo. Em um mundo imperado pelo machismo e a opressão, a gar...