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Houve um tempo em que ela não sabia mais o que era sorrir de verdade. Vivia numa bolha artificial onde tudo não passava de um engano. Uma maquiagem.

Ela não queria isso, claro que não. Mas era como se a cada dia, aquela dor só aumentasse e a sufocasse cada vez mais. Ao olhar para trás, para quando seus pais faleceram, Olívia não via nada além de cinzas e decisões tomadas no piloto automático a partir de então.

Até que sonhar com um estranho deu um sentido diferente a seus dias. Até a perspectiva de haver algo como magia e esperança, de algo que pudesse arrancá-las da realidade que a sufocava dia após dia. Foi o que a fez sentir-se mais feliz, mais viva. E por dias, o que a fez levantar pelas manhãs, vestir a máscara da perfeição e enfrentar o dia. Aliás, foi o que devolveu o sentido a sua vida. A busca por aquele rosto lhe deu um propósito diferente. Era como se finalmente ela pudesse sentir a vida correndo em suas veias.

Sem saber, Ethan a salvou. Salvou de si mesma.

Uma tola, de fato. Ethan não era a mesma pessoa que encantava seus devaneios. Não.

Não.

E aquilo era extremamente assustador, ter se apegado a imagem que ela criou dele. E o mais cômico, se não fosse tão absolutamente trágico fato de que ele sequer fazia ideia disso.

***

Samvel era um São Bernardo que estava com o avô de Ethan desde que ele chegou à cidade. Era o mais bem-humorado dos Murray, sem sombra de dúvidas, e um cachorro apaixonado por borboletas. Ele prendeu Sammy na guia com muito esforço por causa da alegria do cachorro ao perceber que ganharia um passeio e saiu com ele pela rua, o céu alaranjado quase sem nuvens, o sol brilhando com os últimos raios do dia. Ethan ficava repetindo para si mesmo que ia andar sem rumo até encontrá-la acidentalmente, quando sabia que ela era o motivo de ele ter saído de casa para começo de conversa.

Até que ele chegou na larga rua de casas enormes, com fachadas extravagantes. Péssima ideia. Estar ali era uma péssima ideia. Onde ele estava com a cabeça? A casa de Olívia era enorme e amarela, com portas e janelas brancas e cortinas de seda. As luzes da varanda estavam acesas quase como um convite para ir tocar a campainha. Coisa que ele não fez, porque das janelas laterais da casa ele tinha uma visão privilegiada da sala de jantar, e ele viu bem na hora que aconteceu. Olívia sentada à esquerda da tia, que discutia com um Edgar MacMillan majestoso na ponta da enorme mesa de carvalho. Ele viu quando Edgar bateu o punha na mesa com força, e viu quando os olhos de Olívia arregalaram e ela encolheu. Ele viu a bela Lauren levantar da mesa com raiva e viu Edgar puxá-la pelo pulso, quase obrigando-a a sentar-se novamente. Viu quando ela puxou o braço e derrubou a taça de vinho. Viu toda aquela bagunça e continuou andando com Sammy.

Ele não conhecia Olívia. Não deveria estar ali.

Mas também não era certo ver aquilo e não a tirar daquela bagunça.

Quase perto da esquina, ele deu meia volta com Sammy grunhindo em protesto. Estava quase perto da grande casa quando a guia da coleira de Samvel soltou e o cachorro saiu em disparada para dentro da propriedade dos MacMillan. Ele correu, quase alcançando Sammy, e parou ao ver que o cachorro corria para a garota sentada na varanda.

Olívia.

—Oi, garoto — disse Olívia, de sobressalto — Quem é seu dono, bonitão?

Sammy latiu em resposta.

—Prazer, dono do bonitão — respondeu, ofegante, colocando as mãos nos joelhos e respirando profundamente.

—Murray! — respondeu, de sobressalto, levantando os olhos para os de Ethan. E não era timidez que rondava os olhos verdes quando Olivia o encarou — O que faz por aqui?

—Sammy precisava passear. Acho que nos afastamos demais de casa.

—De fato — ela continuou fazendo carinho em Samvel — Então você se chama Sammy? — perguntou ela para o cachorro, que latiu em resposta — Muito bem, então, Sammy, prazer em conhecê-lo. E seu trabalho de sociologia? — disse, sem olhar nos olhos de Ethan.

—Encontrei uma pessoa que não gosta de cenouras. Traumas de infância — ele respondeu, esperando que ela olhasse para ele. Ela não olhou, mas Ethan sorriu ao ver que ela sorria. Ela sabia que era mentira.

—Desculpe ter sido... horrível no almoço mesmo depois de você ter me defendido. E desculpa por ter vasculhado sua vida ao invés de simplesmente perguntar a você.

Ethan apenas a encarou. Samvel latiu mais uma vez, e isso o fez falar.

—Você gostaria de passear com a gente? — claro, Ethan, com você e o cachorro...

—Claro. Por que não? — Olívia sorriu, olhando mais uma vez para ele. Mas a porta se abriu, e Lauren apareceu.

—Olívia, dê tchau a seu amigo. Você precisa entrar. Agora — disse, entrando novamente na casa. Super educada.

A menina apenas suspirou, assentindo. O olhar que deu a Ethan antes de levantar disse coisas que não queria dizer. Disse: você acabou de descobrir que minha vida não é tão perfeita, cara. Ela estava prestes a virar quando um surto de adrenalina repentina fez Ethan falar mais uma vez. O fez agir, na verdade.

—Olívia... — ela parou, a mão pendendo na maçaneta.

Ele puxou um papel do bolso e estendeu a mão para ele, que pegou o que ele lhe dava.

—Meu número. Relaxe, eu não vou te oferecer drogas — o comentário a fez rir — Me ligue quando puder sair comigo e com Sammy.

Olívia entrou em casa e Ethan esperou uns segundos antes de dar meia volta e sair da propriedade.

CONTOS DE GAVETA [Concluída]Onde histórias criam vida. Descubra agora