II

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Um sonho. E um real demais.

E eu não falo no sentido de a pessoa em questão ser o cara dos sonhos, apesar de ele obviamente ser — pelo menos o de qualquer mocinha apaixonada por romances —, eu digo literalmente mesmo.

Olívia sonhou com ele. Foi a primeira vez que o viu.

Cerca de 87,9% da população mundial esquece os sonhos 15 segundos depois de acordar, mas por um deslize do destino não foi o que aconteceu daquela vez. Justo com ela. Uma romântica incurável, psicologicamente fragilizada após anos de perdas e mudanças e traumas, e mentalmente cansada da realidade que era sua vida.

Era quase fácil demais lembrar de suas características, visto que provavelmente — e obviamente — ele só deveria existir em sua cabeça.

Cabelos pretos faziam contraste com a pele quase branca demais. Olhos castanhos-dourados que abrigavam um oceano infinito. Lábios que sorriam e silenciavam os barulhos externos — e internos — de sua mente.

Mas, além das características físicas, Olívia, de alguma forma, sabia dizer que ele tocava violão muito bem, e isso era um fato incontestável. Que ele era um péssimo mentiroso. Que já lera Jane Austen e chorara assistindo Romeu e Julieta, sabia sobre seu amor por pizza e ótimas habilidades como dançarino.

Era como se ele fosse um personagem criado para ela. Alguém que buscava em seus sonhos, e que, inconscientemente, fora criado para aquele fim. Para salvá-la.

Olívia se acostumou em manter o rosto familiar daquele que a alegrava em seus sonhos gravado em sua mente. Mantendo a esperança de tolo de que um dia se tornasse real.

Talvez seja esse um erro que nós cometemos com frequência.

A expectativa. Não, criar essa expectativa e depositá-la em alguém esperando que essa pessoa cumpra os requisitos e exigências que nós mesmos criamos na nossa cabeça. E isso é um perigo também, as coisas que criamos na nossa mente.

***

Harpers Ferry High School. O lar dos Tigres, dos futuros donos da cidade e das patricinhas maldosas. O lar dos hipócritas. Ou o preferido de Olivia, o inferno na terra.

Nas terças havia aula de violino, o que era o ponto mais alto de se estar naquele lugar, e Olívia ensaiava religiosamente para o recital de maio quando o viu pela vigésima nona vez. Mas diferente do habitual, real e de carne e osso.

Bem ali, fora da sua mente e de seus sonhos.

Ele estava encostado na porta leste do teatro, e ela sabia disso porque era a saída mais próxima, por onde ela já havia por diversas vezes planejado sair correndo quando seu nervosismo se sobrepunha ao seu amor por tocar. Era o único ali também, um admirador observando, ouvindo atento a melodia triste de sua vida através das notas da canção, estudando-a, analisando cada movimento. A música parou quando seus olhos se encontraram e ele, como se tivesse escorregado de um sonho, saiu do transe e foi embora batendo a porta. Um observador que não gostava de ser observado.

Não havia a menor possibilidade de aquilo ser real. Estaria sonhando acordada? Ou a insanidade começou a mostrar seus sinais?

Olívia finalizou sozinha seu ensaio lamuriento e saiu pela mesma porta que o garoto havia saído. Talvez, se tivesse um pouco de sorte, poderia encontrar aquela pessoa e deixar claro para si mesma que foi apenas um engano de sua mente cansada e estupidamente sonhadora.

O corredor, porém, não estava totalmente vazio, percebeu com uma pontada de decepção. Mas não era o cara dos seus sonhos que encarava Olívia.

—Olha só quem saiu do esconderijo! MacAzeitona perfeitinha, o que aconteceu com seu cabelo? Parece mais sem graça que o normal.

Ah, não...

—Ei! falando com você, MacEsquisita!

—Deixa a garota em paz, Sarah. Ou ela vai correr pro titio chorando.

—E o que seu titio vai fazer, MacMillan? Acha que vai comprar uma escola e te colocar dentro, sozinha? Só assim pra aguentarem sua esquisitice, não é mesmo?

Você não precisa revidar, Olie, é só ignorar que elas param.

—Pelo menos a gente se livraria de esbarrar na MacPerfeitinha pelos corredores. Quem aguenta tanta perfeição? — ralhou uma das meninas.

—Na verdade, debaixo dessa perfeição toda ela esconde o que realmente é: uma vadiazinha que se acha superior...

—Quanto veneno... — Olívia ouviu o comentário que fez as meninas calarem a boca. O garoto estava recostado no armário com um meio sorriso no rosto, os olhos num livro, como se estivesse lendo de verdade, e interessado na leitura e não no cenário que acontecia bem ali na frente.

—Do que está falando, Murray? Inveja de Olívia? — ela riu, batendo os cílios de um jeito falsamente dócil.

—Ah, não, continuem, meninas, eu só pensei alto — respondeu —Mas cuidado, Pharrel, o titio da MacMillan tem poder suficiente para deixar o seu pai, e, na verdade, a cidade toda sem emprego. De que adiantaria tanta beleza se você ia continuar sendo burra e pobre?

As garotas bufaram, olhando uma para a outra com seus olhares afetados e depois para Olívia, que exibia um sorrisinho vitorioso, antes de saírem batendo os pés pelo corredor, murmurando.

Drogado idiota.

Quando as meninas desapareceram pelo corredor, eles dois finalmente se olharam. Aquilo pareceu uma eternidade. Então Olívia gargalhou, e tudo se resumiu no som daquela risada.

—Acho que ameaçá-la de ficar pobre foi um insulto pior que chamá-la de burra — disse por fim, sentindo a barriga doer de rir.

—Então isso prova como ela é mesmo burrinha — ele riu também.

—Vi você na minha aula de música.

—Sou um apreciador de violino.

—Bom, apreciador de violino, obrigada por me defender.

—Por que ficar calada e deixá-las falar aquelas coisas?

—Porque não me importo.

Ele ainda estava do outro lado do corredor encarando Olívia. Mesmo com 3 metros de distância os separando ele conseguia ver os risquinhos pretos tingindo a íris tão verdes dos olhos de Olívia. E ele queria poder olhar mais de perto. Mas o sinal tocou, arrancando-o do feitiço daqueles olhos verdes brilhantes.

—Eu... — Olívia tentou falar, mas Ethan fechou o livro e deu as costas, indo embora.

—Espero que MacAzeitona não seja um insulto para você — falou, ainda de costas para ela —São deliciosas e a cor é linda. E idêntica a cor dos seus olhos — ele disse sob o ombro, então continuou andando.

Olívia continuou encarando as costas do garoto, até o sinal tocar mais uma vez, lembrando-a da aula de química, a qual, a propósito, ela já estava muito, muito atrasada. Ele havia sumido por entre o corredor agora repleto de alunos. Foi quando percebeu que sequer perguntou seu nome. E agora não sabia se aquilo havia sido real ou fruto de sua imaginação.

CONTOS DE GAVETA [Concluída]Onde histórias criam vida. Descubra agora