18 - EU VI O DIABO

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As paredes jorravam sangue. O corredor da casa era estreito para a quantidade de corpos depositados ali. Eu tentava chegar no quarto da jovem que dormia com uma linda boneca de pano. Os cabelos loiros e encaracolados da boneca repousavam gentilmente sobre os braços estáticos de Isabela.

Eram muitos corpos... inúmeros corpos de crianças de todas as idades e com os mesmos rostos. Porém, os encharcados pelo sangue maligno, eram infantes. Os natimortos estavam com suas bocas abertas, como se lutassem para respirar. Eu me senti uma merda. Nunca havia entrado numa mente tão sinistra, tão cheia de paredes e labirintos... parecia um sanatório. A crueza era dilacerante... aqueles fetos mortos, empilhados como uma pirâmide humana, mexeu comigo.

          Eu fiquei zonza. O corredor estava vivo e se mexia como se fosse a casca de um navio negreiro chicoteado pelas furiosas ondas de sangue. O lustre de cristal acendia e apagava. E aquele cricrilar dos cristais retinindo me deixava mais angustiada, porque não conseguia avançar até o quarto de Isabela.

No meio daquela tragédia dantesca, maligna e surreal eu vi um ínfimo braço de pano queimado, mexendo-se com os corpos das crianças.

          Sem demorar, saltei sobre eles e meti minha mão direita naquele lamaçal de sangue. O cheiro podre invadiu minhas narinas, mas resgatei o boneco costurado que tinha um prego cravado na sua cabeça, e que me lembrava um Cenobita, do filme Hellraiser.

          O maldito boneco retribuiu seu resgate com um sorriso sem boca, e o escutei na minha mente dizer seu nome: "Sou RassouNal, com N maiúsculo". Foda-se como ele se chamava, ou mesmo se tinha a porra de uma letra maiúscula no meio do nome. Minha missão era salvar Isabela.

          Na primeira porta que vi, entramos e caímos num quarto fétido e envolto de escuridão. Uma mulher acendeu a luz e caminhou nua em nossa direção, seus olhos mortos gritavam em desespero mais alto do que seus lábios flácidos, caídos para esquerda, poderiam falar. Ela era branca igual uma vela católica usada para rezar.

Na terceira passada dada pela mulher, seu ventre abriu despejando todos seus órgãos sobre o piso de madeira descascado, se dividindo em duas bandas de pura podridão.

          Logo em seguida, saiu do mesmo quarto um homem obeso e careca que apodreceu na minha frente. As cenas se repetiram tantas vezes que perdi conta. Era uma distração tentando me impedindo de despertar Isabela.

RassouNal me puxou, mas, entramos numa outra porta e Isabela estava lá! Ela dormia no seu quarto com roupas e lençóis limpos, porém sem a boneca.

          As crianças mortas começaram a se mexer. Seus corpos começaram a se formar num só, numa dança perversa e macabra.

          As paredes que dividiam os cômodos sumiram, transformaram-se numa imensa reta de 800 metros cercada por facas flutuantes. Era somente isso que me separava daquela mulher.

Eu comecei a chamar Isabela pelo nome. Tentava acorda-la, mas era inútil.

           A mulher, cheia de pernas e braços das crianças mortas, aumentou suas passadas.

          RassouNal observava tudo e não se mexia.

"ACORDA! ACORDA!" Gritei para Isabela que não se movia! Ela estava viva! Eu sabia! Podia ver sua respiração alternando em seu peito!

"ELA É MINHA! SOMENTE MINHA!" Gritava a mulher conseguindo correr mais rápido.

          Isabela abriu os olhos lentamente e conforme combinei com Beatriz, peguei meu celular e liguei.

           Nada!

          Nada aconteceu para tirar a gente dali.

           A mulher continuava vindo e gritando mais alto, mais feroz... o seu grito era mais pavoroso e doentio a cada segundo que passávamos ali.

Não havia outra solução.

           Só havia uma forma de sair dali levando Isabela comigo. Peguei a primeira faca flutuante que vi, coloquei minha mão aberta sobre o móvel de cabeceira ao lado da cama dela e decepei meu dedo mindinho.

          Acordei gritando, sentindo uma dor alucinante, olhando para meu dedo que não existia mais e fui imediatamente amparada em minha queda agonizante do sofá, por Beatriz.

Isabela acordou segundos depois, tossindo.

           O sentimento que voltou comigo era ruim. Claustrofóbico. Eu desejava respirar e não conseguia, foi quando desmaiei.

         Não sei quanto tempo fiquei apagada. Mas, ao despertar, as duas estavam sentadas junto a mim. Não se incomodaram com as cores das minhas íris.

          Realmente fiquei feliz em ver Isabela sã e salva, porém, não podia dizer o mesmo quanto a Beatriz. Ela quase me matou.

Ao pergunta-la o porquê de não ter visto meus olhos piscarem aceleradamente enquanto ligava do outro mundo, Beatriz pediu desculpas dizendo que estava no banheiro. Eu suspirei com mágoa e olhei para minha mão esquerda que parecia nunca ter existido um dedo mindinho.

          A dor era o único modo 100% eficaz de poder voltar de uma Intrusão.

          Beatriz me abraçou e novamente pediu desculpa. Chorou enquanto olhava para minha mão esquerda e o rosto de Isabela, respectivamente.

          As lágrimas foram um misto de alegria pela enteada e tristeza pela minha mutilação.

          Isabela vestia um conjunto floral e usava um perfume cítrico floral adocicado quando pegou na minha mão mutilada, abraçando-me em seguida.

          Foi então que percebi que estava diferente... eu vi Isabela matando a mãe grávida. Eu vi Isabela matando o pai envenenado e depois a vi bebendo do mesmo veneno. A minha mutilação me deu um maldito dom. Porra!

— Você realmente é especial, Jude Salomão. — Disse-me Isabela cinicamente deslumbrada comigo.

          Isabela viu o que vi... vimos o mesmo filme sendo rebobinado em milésimos de segundos, diante de uma tela gigante de cinema. Não perdemos um detalhe do que ela havia feito.

           Beatriz estava tão assustada com o que ouviu, que vomitou.

— Não era para essa imbecil ter demorado tanto para encontrar minha agenda e achar seu telefone num recorte de jornal. Literalmente errei nisso... confiei minha vida numa idiota que não prestava nem para fazer meu pai gozar. Demente maldita.

—Isabela... o que está dizendo? — A tristeza de Beatriz era palpável. — Eu te amo. Você sempre foi como uma filha para mim.

— Agora terei que matar novamente. — Continua Isabela — Eu te acho foda Jude Salomão, mas, nunca poderia te deixar viva, realmente sinto muito por isso. O que não posso dizer o mesmo de você, mamãe.

O que Isabela não sabia é que não foi apenas esse dom maldito que veio comigo.

          Ele veio junto...

           RassouNal... a total ausência da razão. Aquele que enlouquecia um diabo.

          A inexistência da bondade na vida de Isabela, criou enquanto ela dormia no seu coma profundo, aquele boneco com olhos de tamanhos desconformes, feitos com botões de roupa, costurado como se fora um mini Frankstein e que tinha um longo prego atravessado em sua cabeça.

— Você é o diabo, menina. — Quando RassouNal terminou de dizer isso, eu vi um pó saindo da sua mão queimada fazendo Isabela se apagar igual uma televisão desligada bruscamente.

          Eu vi Isabela voltar para o coma.

          Eu vi o diabo. Não é brincadeira ou conversa fiada. Eu, Jude Salomão, o vi em carne e osso. Ele não é vermelho infernal e nem tem rabo ou mesmo chifre. Também não parece um anjo da Idade Média, ou tem cabelos loiros ou crespos angelicais. Eu vi o diabo. Eu sentir seu cheiro cítrico adocicado sem enxofre.

EU VELO SEU SONO - Lançamento 28/03/22 - Em Andamento Onde histórias criam vida. Descubra agora