Capítulo 29: Matar o sonho é matarmo-nos

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"Matar o sonho é matarmo-nos. É
mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos
de realmente nosso, de impenetravelmente e
inexpugnavelmente nosso."

— Fernando Pessoa 


Como em um sonho distante Charles apareceu em cima de um cavalo. Podia ver que cavalgava com dificuldade e, ao ver a cena diante de si, puxou as rédeas imediatamente. — Helene? — Chamou por meu nome uma outra vez, agora com cautela na voz.

— Eu não consegui impedir... — sussurrei, apesar dele ainda estar distante.

O sangue havia se espalhado, minhas roupas, meus braços, mãos, eu estava marcada com a lembrança da morte da minha melhor amiga.

Os guardas fugiram com Amélia, me deixando sozinha com o silêncio de minha dor não sei por quanto tempo. A chegada de Charles me despertou de todo aquele horror, mas ainda não compreendia como aquilo podia ser real.

— O que aconteceu? — perguntou, se abaixando ao meu lado na relva.

— Eles a levaram — falei, levantando minhas mãos banhadas em vermelho. — Levaram Amélia e mataram Isabelle...

Esfregava minhas mãos no tecido áspero do vestido a fim de tirar de mim toda sofrimento. Sabia muito bem que e a terrível culpa de não ter feito nada para impedir me perseguiria para sempre.

"Ela se foi" sussurrei, enquanto Charles me envolvia em um abraço. Minhas lágrimas escorriam furtivamente, se juntando com o sangue e marcando o fim de uma parte da minha vida.

Ali, a beira de seu corpo, ouvi sua voz uma última vez. — Lene? — Isabelle me chamava, abriu os olhos com dificuldade e sorriu com sangue escorrendo de seus lábios. Não conseguia imaginar como ela podia sorrir naquelas circunstâncias.

— Belle! — Gritei entre as lágrimas. — Minha amiga, não me deixe eu lhe suplico!

— Diga para Amélia que a amei até meu último suspiro — falou, antes de olhar para o lado e tossir mais um pouco de sangue — Charles está aqui.

— Sim, ele veio. — Olhei por um segundo para o lado, lembrando-me que o homem da minha vida estava ali por mim.

— Vocês precisam partir, eles irão voltar.

— Não vou a lugar algum sem você! — Protestei, entrelaçando nossas mãos. — Não me deixe...

— Seja forte, por Emma. — disse, olhando adiante onde minha irmã nos espreitava confusa. — E seja feliz, pois poderá viver o amor que eu nunca poderei. Não deixe que minha partida lhe impeça de viver seu sonho.

— Como ser feliz sem você ao meu lado?

— Viva tudo o que não poderei viver... — fechou os olhos, já estava fraca demais para falar. — Sempre que precisar de mim, estarei com você. Serei o céu e a chuva, o sol e o mar, estarei com você em todos os momentos.

Notei sua respiração fraca e rouca cessar, as gaivotas gritaram acima de nós, em um lugar que outrora seria um paraíso. Isabelle Thompson havia partido para sempre, deixando-me somente a lembrança da pessoa mais gentil que pude conhecer.

— Eu te amo minha amiga, nunca a esquecerei —apertei seu corpo junto ao meu peito, incapaz de deixá-la ir.

Charles colocou meus cabelos para trás, como um aviso de que precisávamos partir. Não havia mais forças dentro de mim, não sabia como poderia seguir viagem e deixá-la para trás. Suas últimas palavras ainda ecoavam em minha mente, deixando-me com um conforto da solidão que viria a seguir.

Emma se aproximou cuidadosa, apesar de estar distraída com a praia, segurava algumas flores selvagens: ramos de lavanda e pequenas margaridas brancas. Lembrei que era a primeira vez que ela conhecia o mar. Sorri, afagando seu rosto pequeno e curioso.

Charles tirou seu sobretudo, cobrindo o corpo inerte de Isabelle enquanto eu e minha irmã fomos buscar por mais flores para colocar ao seu redor. Era um conforto saber que as flores estariam ao seu lado, já que eu não poderia mais. Ali, pronta para descer a escadaria do penhasco novamente, soube que deixava para trás parte do meu coração. E apesar de o sol estar nascendo, era como se tivesse, na verdade, se apagado.


Encontramos o barco de Lady Amélia pouco tempo depois, estava ancorado perto da praia. A areia se estendia como um cobertor branco banhado pela água gélida do mar. Fora preciso alguns minutos para fazer com que Charles compreendesse por inteiro nosso plano, contudo, prestou atenção em cada detalhe, e não hesitou em subir a bordo.

— Trouxe todas as minhas economias — explicou — deve ser o bastante para nos estabilizarmos em Calais. Pensei em fugirmos para o norte, mas creio que a França é de fato um destino mais seguro.

— Abigail estará esperando por nós? — Emma perguntou, lembrando novamente da irmã. Em meu interior soube que ainda não havia cumprido minha missão na Inglaterra, mas soube que daria tudo de mim para encontrá-la.

— Escute, — respondeu Charles, a acomodando em um lugar confortável da pequena embarcação. — Não descansarei até que você e sua irmã estejam juntas novamente, é uma promessa. Está bem?

Sorri apesar de toda dor e sofrimento que deixávamos para trás, nosso futuro parecia promissor e tranquilo. O mar, ainda um pouco revolto por causa do frio, guiava-nos para o nosso novo lar.

— Vamos ser felizes — falei, observando Charles nos proteger dos respingos das ondas maiores.

— Sim, — ele respondeu sorrindo — vamos ser muito felizes.

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