17 - Imperdoáveis

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Após o término das aulas, quando todos os alunos já haviam ido para suas casas, os Sobrenaturais discutiam com fervor dentro de uma sala de aula escura e gelada, trovões estrondosos e cheios de ira faziam todo o ambiente tremer. As gotas de chuva escorriam pelas vidraças das janelas como as lágrimas de um gigante.
O temporal chegara repentinamente, assustando a todos. Do nada, o sol radiante e a brisa quente deram lugar para nuvens escuras e cinzentas, e alguns instantes depois, uma pancada forte de chuva chegara, diminuindo subitamente a temperatura fresca e quente, deixando todo o lugar num frio tão profundo que chegava a ser capaz de gelar os ossos.
Willen estava sentado na cadeira do professor, os braços apoiados no birô, seu casaco marrom abotoado até o pescoço para aquecer o corpo alto e esguio. Madeixas de cabelo castanho escuro caíam sobre seus olhos cor de âmbar. Rick, esbanjando elegância e sofisticação como sempre, estava inquieto, andando em círculos pela sala. O cabelo loiro continuava arrumado, e os olhos verdes brilhavam com uma intensidade feroz. Jully desenhava na lousa, enquanto Thaylla sentava numa carteira e Emily se erguia por trás de Thaylla, as mãos apoiadas nas costas da cadeira. Kyle estava quieto e solitário nos fundos da sala, o breu devorava o cômodo.
Willen limpou a garganta e começou a falar, jogando mechas de cabelo para trás dos olhos.
- Acho que vocês já sabem o motivo dessa reunião - ele disse.
- Eu só vim porque você disse que ia ter comida grátis - falou Jully, desenhando crianças correndo num campo florido na lousa. - Aliás, cadê a comida? Quero sanduíches.
Kyle resmungou alguma coisa, mas ele estava longe demais para alguém ouvir.
- Coma mais uma ervilha, que você irá explodir como uma bomba atômica e matar todos ao seu redor - Thaylla disse, erguendo a mão e olhando para as unhas pintadas de preto. - Seria tipo um Armageddon.
- Vamos parar com isso - Emily cortou. - Willen nos chamou aqui por uma razão séria - ela saiu detrás da carteira onde Thaylla estava sentada e andou pela sala até chegar ao birô de Willen, em seguida contornou a mesa e ficou ao lado dele, colocando a mão em seu ombro. - Não é hora para brincadeiras. Agora que encontramos ela, as coisas podem tomar outros rumos.
- É verdade - Willen concordou, agradecendo mentalmente por Emily estar sempre disposta a ajudá-lo em todos os momentos. - Nós sabemos o quão poderosa ela é.
- Sim, só não sabemos o porquê - Rick disse, deslizando calmamente pela sala de aula como uma serpente prestes a dar o bote. O moletom branco com listras verdes entrava em sincronia com seus olhos. - Octavian nos disse milhares de vezes que ele é poderosa pra caramba, o quanto ela é especial e blá blá blá. Só não nos disse o motivo dela ser tão valiosa assim.
- Estão vendo só? - Thaylla fez um gesto com a mão, indicando Rick. - Eu não sou a única que ficou com o pé atrás. Também não confio nela.
- Eu não disse que não confio nela - Rick se explicou. - Só quis dizer que não entendo como ela pode ser tão especial para os planos de Octavian.
- Talvez ele esteja errado em pensar que nosso futuro depende dela - Thaylla balançou a cabeça, incrédula. - Octavian não pode estar certo em tudo o tempo todo.
- Dá um tempo, Thay - Emily disse. - Todo mundo aqui já sabe que você está implicando com a garota. Eu gostei da Maeve, confio nela.
Thaylla olhou para Emily fixamente antes de responder. Ela abriu a boca e falou lentamente:
- Você confia muito facilmente nos outros, Emily. Esse é o seu problema. Se você confia em alguém rápido demais, consequentemente vai se decepcionar rápido demais.
- Quanta baboseira - Jully se intrometeu. - A única maneira de descobrir se você pode confiar em alguém, é confiando. Temos que arriscar.
Rick estava com uma expressão chocada no rosto. Ele cobriu a boca com as mãos e deixou escapar uma expiração ruidosa, demonstrando surpresa.
- Oh, por Allard! Jully finalmente falou alguma coisa inteligente. Talvez seja mesmo o fim dos tempos.
Jully pegou o apagador no apoio da lousa e o jogou em Rick, errando por pouco mais de três centímetros o rosto do garoto.
- Mas o que é isso, sua ogra? Inveja do meu rosto esbelto de deus grego? - Rick protestou. - Quanta barbaridade, meu rosto é lindo demais pra ser atingido por um apagdor.
- Lindo mesmo é a minha mão na sua cara, babaca - disse Jully, procurando outra coisa para atingir Rick.
- Crianças, parem com isso - Willen disse, mas Jully e Rick continuaram discutindo. Willen então levantou a mão tranquilamente e estalou os dedos.
O som ecoou por toda a sala e se demorou para cessar, como se alguém tivesse gritado dentro de uma caverna. O som se demorou por uns instantes, ecoando pelas paredes, e depois começou a se extinguir vagarosamente.
Rick e Jully pareciam estar gritando agora, mas nenhum som saía das bocas deles. Eles viraram para Willen, ainda gritando sem emitir som algum, e gesticulando freneticamente. Thaylla e Emily pareciam estar se divertindo com a cena.
- Fiquem calminhos agora, OK? - Willen perguntou, e Rick e Jully fizeram que sim com a cabeça, obedientes. Rick revirou os olhos de forma exagerada, e Jully batia o pé no chão como uma criança mimada.
Willen levantou a mão e estalou os dedos novamente. Dessa vez, o eco foi mais baixo e breve, rapidamente silenciado pelo ronco monstruoso do trovão.
- Isso era mesmo necessário? - Rick reclamou. - Não seria mais fácil pedir silêncio?
- Como se isso fosse adiantar alguma coisa - Willen retrucou.
- Vocês deveriam estar felizes por terem a honra de ouvir uma voz tão harmoniosa e suave como a minha.
- Tá legal, Sr. Narcisista, vamos deixar o Will falar agora - Jully disse.
- Pois bem - Willen riu. - Vamos voltar ao que interessa. Maeve LeBlanc é o motivo de estarmos aqui hoje.
- Como eu disse, só estou aqui pela comida - Jully ressaltou.
- Não tem comida aqui - Rick disse.
- Quero comida!
Willen prosseguiu como se não tivesse havido interrupções.
- Eu entendo o ponto de vista de vocês. Mal conhecemos essa menina, então por que deveríamos confiar nela?
- Agora você está falando a minha língua! - Thaylla se alegrou.
- Essa pergunta foi retórica, Thay - Will disse. - Devemos confiar nela porque Octavian confia. E se não confiarmos um no outro, estamos perdidos. São tempos difíceis, não há como esconder. Sabemos o que está vindo. A única maneira de sobreviver a isso é lutar, e se quisermos ter uma chance de vencer, precisamos dela do nosso lado.
- Maeve é uma peça crucial no jogo de Octavian - Emily tomou a dianteira, o vestido florido balançava com o vento frio que escapava pelas frestas da porta trancada. - Independente de tudo, se Octavian precisa tanto dela, é nossa obrigação protegê-la para que ela não caia em mãos erradas. Algumas vezes, nossa arma pode ser usada contra nós mesmos.
- E não vamos querer que isso aconteça - Wille finalizou.
Eles ficaram em silêncio por alguns instantes, pensando a respeito dos argumentos.
Como ninguém respondeu, Rick quebrou o silêncio perturbador que se seguia.
- Eu acho tão fofo a maneira como vocês completam as frases um do outro.
Willen ergueu as sobrancelhas, e Emily baixou os olhos, envergonhada.
- OK, eu não sou obrigada a ouvir isso sem dar a minha opinião - Thaylla se manifestou.
- Lá vem bomba - Rick lamentou, acariciando as têmporas.
- Octavian pode até precisar dela, mas por que nós precisamos dela? Ela nem sequer faz parte dos Escolhidos.
- Vale lembrar que os Escolhidos ainda não foram escolhidos - Jully disse.
Rick ficou confuso. Todos olharam para Jully sem entender.
Emily balançou a cabeça.
- Acho que a Jully quis dizer que mesmo que Octavian tenha fé que nós somos alguns dos Escolhidos, ainda não sabemos com certeza. Ainda faltam quatro para serem encontrados. Não é hora de pensar, é hora de agir. Temos que fazer alguma coisa a respeito.
- Não há mais nada a ser discutido - Rick cerrou os punhos e começou a andar pela frente da sala. - Octavian quer Maeve no nosso time, e é nosso dever trazê-la para o nosso lado. Só Allard sabe o estrago que ela pode fazer se for para o lado errado.
- Rick tem razão - Jully disse. - Mesmo que eu odeie dizer isso, ele está certo. Não há nada que possamos fazer agora. Octavian foi bem claro: ele quer que a gente fique de olho em Maeve, que a mantenhamos em segurança. Fomos treinados para isso.
- Esperem um pouco, deixem eu ver se eu entendi - Thaylla estava com a respiração ruidosa. Ela ia estourar em qualquer momento. - Estão querendo dizer que vamos lutar e morrer por uma garota burra que não sabe sobre nada que está em jogo?
- Ela tem muito a perder com tudo isso, Thaylla - Willen disse. - Todos nós tivemos que fazer sacrifícios. Você mais do que ninguém sabe que o sacrifício é a maneira mais difícil e sofrida de cumprir um dever. Assim como todos nós, ela também vai sacrificar coisas que ama, vai deixar pessoas para trás. Ela é igual a mim e a você.
- Não me compare a ela - Thaylla disse, com raiva. - Ela não sabe o que eu passei para chegar até aqui.
Emily estava horrorizada com a reação agressiva de Thaylla.
- Como pode dizer isso, Thaylla? Você nem sequer a conhece e está agindo como se a odiasse! Não há razão pra tanto rancor e ódio.
- Eu não preciso ter motivos para odiar os outros. Apenas odeio e pronto. O ódio é meu, posso usar com quem eu quiser. Não podem tirar ele de mim.
Rick balançou a cabeça.
Ele realmente gostou muito de Maeve, ela parecia ser bastante legal e agradável, não havia motivo para ele querer o mal dela. Embora eles tivessem se conhecido há pouco tempo, ele já a considerava quase como uma amiga.
Atrás daquele menino cheio de segurança e irônico, existia uma pessoa fiel e amigável. Ele não ia deixar que Thaylla falasse mal de Maeve daquele jeito.
- Inacreditável - ele disse. - Você implicou com a garota sem nem antes tentar conhecê-la melhor. Qual é mesmo o nome disso? - Rick bateu um dedo nós lábios, pensativo. - Ah, lembrei - ele levantou o dedo, como se tivesse acabado de ter uma ideia genial. - Inveja. É isso. Você tem inveja dela. Essa é a úncia coisa que consigo pensar pra justificar essa raiva toda.
Thaylla esticou as pernas e cruzou os pés. Apoiou a cabeça numa das mãos e se ocupou assoprando fios de cabelo preto com mechas roxas que caíam sobre seus olhos castanhos escuros.
Com aquela calça jeans rasgada, casaco preto desbotado e unhas pintadas de preto, ela parecia mais rebelde e arrogante do que era de fato.
Thaylla tinha dois lados, e era por isso que ela rapidamente conquistou o afeto dos colegas, mesmo que tivesse usado métodos estranhos.
Toda aquela agressividade, rebeldia e destemor eram parte ativa de Thaylla, que não hesitava nem por um segundo em dizer o que pensava ou fazer o que queria, mesmo que as consequências de seus atos fossem severas.
Thaylla era uma pessoa difícil de lidar, todos sabiam, mas se você tivesse paciência e calma, com o passar do tempo você veria o que ela era por dentro. Bem lá no fundo, escondido nas profundezas obscuras de sua alma, existia amor e bondade. Ele não os usava com frequência, e era por isso que ela era tão admirada, de certo modo, pelos outros: ela era a mais forte.
Ela era forte porque não permitia que seus sentimentos interferissem em suas decisões.
- Thaylla, minha querida, sabe que eu te amo, mas tenho que dizer - começou Jully. - Você está tão estrassada assim por falta de p...
- ECA! QUE NOJO! - Rick exclamou. - Não termine esta frase imunda. Sou puro demais para ouvir isso!
- Aham, até parece que você não gosta.
Rick começou a gargalhar.
- Não posso desmentir isso. Mas mesmo assim, sou muito inocente para ouvir essas atrocidades.
- Não me façam estalar os dedos de novo - Willen alertou, tranquilamente.
- Tá, parei - Rick e Jully falaram no mesmo tempo.
- Obrigado - Will retomou a postura. - Thaylla, você tem todo o direito de não gostar dela, mas isso tudo vai além de afinidade. Nossas vidas, nossa casa, nossa raça... Estamos prestes a perder tudo isso. É preciso deixar de lado as desavenças e começar a lutar. Maeve é nossa única esperança.
- Engraçado - Thaylla encarou Will, curiosa. - Você está depositando muita fé nela.
- Se Octavian acredita nela, então eu também acredito.
- Não espere tanto dela.
- Por que não? - Willen agora estava curioso para saber.
- Prefiro não criar expectativas. Quanto menos expectativas criarmos, menor será a decepção no final.
- Quem garante que ela será uma decepção? - Willen se inclinou sob o birô para encarar Thaylla nos olhos.
Thaylla também se inclinou para a frente, olhando profundamente nos olhos de Willen, sem desviar o olhar nem por um segundo.
- Quem garante que ela não será?
Kyle, que estivera em silêncio até então, sem soltar um pio sequer, levantou da carteira onde estava e caminhou até a frente da sala, bem devagar. Seus passos eram firmes.
O cabelo castanho estava desgrenhado como de costume, a roupa social e comportada o deixava com um ar muito sério para um jovem de apenas 14 anos de idade. A boca era uma linha fina e rígida, os olhos focados e sérios.
Ele começou a falar.
- Vocês podem não ligar para o que eu penso, mas estão acho que estão cometendo um erro - ele dirigiu a palavra a todos, até mesmo para Willen. - O que vocês sabem sobre essa garota? Nada. Ela pode ser nossa inimiga tanto quanto os Amantes do Alvorecer. Até mesmo Octavian pode errar em suas decisões. Ela pode não ser o que ele pensa que ela é. Eu, pelo menos, penso que ela não é o digna de confiança. Ela deve provar, tem que mostrar o seu valor.
Os Sobrenaturais refletiram sobre os argumentos de Kyle. Willen estava prestes a falar, mas foi interrompido antes mesmo de abrir a boca.
- Você tem toda a razão no que disse, Kyle - Jully disse. - Não ligamos para o que você pensa.
Emily e Rick abaixaram as cabeças e riram discretamente. Até mesmo Thaylla tentava esconder um sorriso.
Kyle lançou um olhar feio para Jully, que o encarava sem medo algum.
Willen interviu.
- Kyle tem o direito de opinar também, Ju. Ele é um de nós.
- Então ele deveria começar a agir como se fosse um de nós de verdade - ela retrucou. - Fala sério, Will. Kyle dedica a vida dele a nos ignorar, mas na hora de tomarmos decisões importantes ele acha que pode opinar? Que piada.
- Todos nós temos a liberdade para expressar nossas opiniões...
Willen não terminou, pois Kyle fez um gesto com a mão, indicando que ele se calasse.
Kyle olhou para Jully com tanto ódio que seus olhos brilhavam com um toque de maldade. O ar envolto a Kyle adquiriu um leve tom de vermelho, como se fosse fumaça saindo de uma chaleira.
- Preste atenção, gorda inútil. Ao contrário do que vocês pensam, eu quero o bem dos Hereges tanto quanto qualquer um aqui. Mesmo não demonstrando da maneira correta, eu ainda me importo o suficiente para alertar que estão cometendo um erro. Depositar toda essa confiança em cima de uma menina que mal conhecemos não é certo, não é racional - Kyle lembrava um líder político discursando para seus eleitores e representantes, tal era sua convicção e firmeza. - Estamos enfrentando uma era de trevas e maldade, isso é sabido. Coisas estranhas tem acontecido nos últimos tempos, e a destruição está chegando para cada um de nós, isso é inevitável.
- Então o que você sugere? - Emily levantou as sombracelhas, os olhos claros penetrando os de Kyle. - O que você acha que devemos fazer? Matar Maeve e jogar o corpo dela numa lata de lixo?
- Até que não é má ideia - Thaylla disse.
- O que quero dizer é que ela deve provar que é digna de nossa confiança. E se nós...
Kyle parou de falar.
A sala estava agora tão fria quanto o interior de uma caverna esculpida em gelo. Quando os garotos respiravam, era possível ver o ar bem na frente de seus rostos.
Uma névoa cinzenta e densa começou a deslizar por debaixo da fresta da porta, e em poucos segundos o recinto estava preenchido completamente por essa bruma gelada.
De dentro da névoa, a silhueta de um ser humano começou a se formar.
Começou como uma mera sombra, em seguida foi ficando mais sólida e maior, até que por fim a sombra dentro da névoa adquiriu pernas e braços, como um ser humano. Logo depois, a figura sinistra deu curtos passos para fora.
A coisa dentro da névoa usava um traje negro com um capuz, um tipo singular de robe, deixando à amostra uma linda cabeleira da cor da palha.
Octavian saiu de dentro da névoa mística, o capuz abaixado, de modo que seu rosto estonteantemente bonito e esculpido ficasse à amostra. Os olhos geralmente cinzas estavam em um tom muito forte de azul agora.
Ele fez um gesto largo com os braços e toda a névoa desapareceu, mas o frio intenso continuava lá.
- Não - ele disse, a voz calma e tranquila, porém firme e decidida. - Não vou permitir que façam nada disso. Não há necessidade.
Thaylla levantou da cadeira e encarou Octavian, assustada.
- Você estava espiando a gente? Como pôde?
- Na verdade, eu o chamei aqui - Willen disse. - Não é certo agir pelas costas de Octavian.
- E você fez muito bem em ter me chamado, Will - Octavian sorriu como um anjo, mesmo que aquelas vestimentas negras o deixassem mais parecido com um anjo vingador. - Essa " reunião " foi um erro. Não posso deixar que façam bobagem. Não podemos perder Maeve. Seria arriscado demais tê-la nas mãos dos nossos inimigos.
Kyle andou até Octavian e ficou cara a cara com ele.
- Quero saber apenas uma coisa. Por que devemos confiar nela?
Octavian olhou para Kyle com autoridade, como se fosse um leão olhando para o cervo que estava prestes a devorar.
- Porque eu estou mandando. E se você for inteligente o bastante, irá fazer o que estou dizendo.
- E se eu não for assim tão inteligente? - Kyle desafiou.
- Então não deixarei que sua burrice leve todos nós à ruína.
Todos ficaram calados.
Octavian era realmente muito peculiar e difícil de se lidar. Ele tinha um gênio forte e nunca dava o braço a torcer, mesmo estando errado.
Os meninos aprenderam desde cedo que era esse o temperamento frágil dele, e não havia nenhum jeito de mudá-lo.
Mas mesmo que ele fosse tão autoritário e uma vez ou outra agisse como um ditador, ele era sábio, gentil e atencioso. Um pai de verdade.
Willen não sabia o que fazer. A responsabilidade de proteger e liderar o grupo cabia a ele, mas ele ainda era fraco o bastante ao ponto de precisar convocar Octavian para tomar as decisões por ele. Mesmo odiando admitir, Willen era apenas um pupilo. Octavian era o verdadeiro mestre. Ele é que deveria tomar as decisões, quer eles gostassem ou não.
Octavian baixou a voz, quase sussurrava enquanto falava.
- Pensei que depois de todo esse tempo juntos, eu tivesse conquistado a confiança de vocês. Pelo visto vou ter que me esforçar mais.
Rick se aproximou dele e pôs a mão em suas costas, tentando reverter o transtorno da situação.
- Não diga isso - ele falou. - Confiamos em você.
- Se isso fosse mesmo verdade, vocês não estariam aqui, discutindo maneiras diferentes de desobedecer os meus comandos.
- Não era isso que estávamos fazendo... - Emily tentou se explicar.
- Ah, não? Porque é exatamente o que parece. Tudo o que vocês foram incumbidos de fazer era só ficar de olho em Maeve enquanto ela estivesse aqui. Fazer reuniões secretas para contrariar minhas ordens não fazia parte do nosso acordo.
Thaylla tentou emendar a situação, então apelou para o drama, e consequentemente para o lado sentimental de Octavian.
- O motivo de estarmos aqui agora é porque nós conversamos muito sobre isso e tivemos pontos de vista diferentes sobre Maeve. Uns acham que ela é confiável, outros acham que ela não é o que parece ser... Não é nada demais. Não queríamos incomodar você com isso. Sabemos que você tem mais coisas importantes para fazer. Não queremos atrapalhar. Já damos problemas demais para você, tudo o que queríamos era poupá-lo de mais um. Peço desculpas, em nome de todos nós.
Os meninos olharam surpresos para Thaylla, que deu de ombros disfarçadamente. Ela realmente era uma ótima atriz, e suficientemente convincente para fazer Octavian ceder.
- Vocês estão certos - ele balançou a cabeça. - Me desculpem. Têm razão. Somos uma equipe. Temos que tomar nossas decisões, juntos.
Kyle e Thaylla sorriam.
- Isso significa que estou aceitando sugestões sobre o que podemos fazer para contornar esta situação - finalizou Octavian.
Kyle tomou a dianteira.
- Então não deixe ela entrar para o grupo - Kyle praticamente implorava para Octavian. - Vamos deixá-la aqui e enfrentar a profecia juntos. Talvez ela nem seja uma dos Escolhidos...
A expressão suave de Octavian rapidamente ficou rígida de novo.
- Isso está fora de cogitação. Quantas vezes tenho que repetir que Maeve é importante para nós? Ela pode ser a chave da nossa salvação, e além disso ela é um ser humano. Não podemos descarta-la como se fosse lixo. É desumano.
- Mas... - Kyle protestou.
- Não há " mas ". Eu vou treiná-la e ela será uma de nós. Se eu fosse vocês, iria embora agora. Não tem mais nada para ser discutido por aqui.
Octavian deu uns passos para trás, analisando cada um dos garotos nos olhos, a decepção tomava conta dele.
- Por favor, só confiem em mim. Eu também tenho sentimentos. Estou tão assustado quanto vocês. Eu também sinto medo.
A névoa voltou a brilhar, e então ela formou uma espécie de parede atrás de Octavian. Ele penetrou a densidade da névoa com as costas, e quando a bruma cessou, ele já não estava mais lá.
- Meus parabéns, Kyle! - Rick exclamou, assim que Octavian desapareceu. - Você estragou tudo mais uma vez!
- Isso não teria acontecido se Willen não o tivesse convocado - Kyle acusou.
- Não coloque os seus atos pela culpa do Willen - Jully disse.
- Jully, o certo é  " Não coloque a culpa dos seus atos no Willen. " - Emily corrigiu.
- Tanto faz, a metáfora é a mesma.
Willen levantou da cadeira abruptamente.
- O que você queria que eu fizesse? Não podemos tomar decisões e esconder de Octavian. Não é assim que funciona. Lembrem que ele é quem manda. Nós só obedecemos. É o sensato a ser feito.
- Isso é covardia! - Kyle gritou. - Você está tão ocupado servindo a Octavian como um cachorro sem dono que não tem capacidade 
de pensar com a própria cabeça, de tomar suas próprias decisões.
- Aí é que você se engana. Minha cabeça decidiu que o certo a se fazer é seguir as ordens de Octavian.
- Não precisamos de Octavian. Sabemos lutar, podemos muito bem nos defender sozinhos.
Willen riu frustrado e apontou para Kyle.
- Não seja idiota. Só porque somos bons lutadores não quer dizer que somos bons guerreiros. Fomos treinados para nos defender, não para lutar. Não para matar. Octavian é mais que um mestre, ele é nosso guia, nosso guardião. Apenas ele pode nos orientar, somente ele pode nos ajudar a enfrentar o que vem daqui pra frente.
- Não justifique sua covardia e seu medo com lealdade ou dignidade - Kyle disse, tentando recompor a postura. - Isso só te faz parecer ainda mais covarde e medroso.
- Ser leal e seguir ordens não quer dizer que você é fraco ou covarde - Willen explicou. - Significa que você é inteligente e sensato. Se você sabe que vai perder, então não entre na briga. E se for brigar, então que não seja sozinho.
Kyle ficou sem argumentos, então se calou. A tensão era palpável.
Rick, Emily, Jully e Thaylla estavam perdidos, desnortedos.
Eles ainda não tinham uma opinião formada sobre Maeve, não sabiam como lidar com a chegada repentina dela, e toda essa discussão sobre confiar ou não só os deixava mais confusos, sem rumo. Era a obrigação de Willen arranjar uma maneira de orientar os amigos. Não podia decepcionar Octavian, e acima de tudo, não podia decepcionar a si mesmo, e nem aos seus amigos.
Ele deu a volta no birô e ficou de frente para todos, para que ninguém pudesse perder seu fio de raciocínio.
- Nosso grupo está dividido, e isso não é bom - ele começou, esfregando as mãos uma na outra para poder aquecê-las. - Não é bom ficarmos brigando entre si, duvidando um dos outros. Em tempos de caos a união é a nossa única força. Se quisermos ter uma chance contra os males que nos rodeiam precisamos estar juntos. Precisamos ser fortes, não apenas por nós, mas pela nossa raça inteira. O futuro da nossa Tribo está em nossas mãos. Não podemos permitir que um impasse nos separe. Ninguém é obrigado a concordar com tudo, muito menos a apoiar tudo que for decidido, mas às vezes vale a pena deixar o orgulho de lado em nome de algo maior. Estamos enfrentando um tempo difícil, e precisamos de toda a ajuda possível se quisermos sobreviver. E de algum modo, Maeve tem o poder de nos ajudar nessa empreitada. Às vezes confiar compensa. Mas às vezes acreditar que tudo vai acabar bem compensa mais ainda. Pensem nisso. Pensem em todos os sacrifícios que Octavian fez por cada um de nós - Willen parou de falar por alguns instantes e olhou os amigos, um de cada vez, diretamente nos olhos, suplicando. - Todo sacrifício, por mais doloroso e difícil que seja de ser feito, tem um retorno no final.
Rick sorriu, assim como Emily. Haviam lágrimas se formando nos cantos dos olhos de Jully, mas ela as secou sem que ninguém percebesse. Thaylla estava de cabeça baixa, parecia estar quase envergonhada. Se Thaylla não fosse Thaylla, Willen até poderia pensar que ela estava arrependida.
Kyle continuava de cara fechada, sem dizer uma palavra.
Então ele deu as costas e voltou para os fundos da sala.
Emily foi confortar Willen, dizer palavras de conforto e consolo. Jully e Thaylla estavam sentadas, sem dizer nada.
Rick caminhou até as janelas de vidro no canto oeste da sala e encarou a chuva forte através das vidraças.
As íris verdes de Rick ficaram num tom intenso e impactante de um verde bem escuro, eles se destacavam em meio ao breu da sala e ao céu cinza escuro além dos limites da escola.
A chuva caía cada vez mais forte. Ele encostou a cabeça na janela, o cabelo loiro roçando no vidro gelado.
- Tem uma tempestade chegando - ele disse, meio grogue. - E essa tempestade vai trazer morte e destruição para este mundo. Temos que estar preparados para o pior. A tempestade está ficando cada vez mais próxima.
Um raio cortou os céus, acertando uma árvore ali perto do prédio da escola.
O tronco foi atingindo e instantaneamente começou a pegar fogo. Não demorou muito até que a árvore fosse completamente consumida pelas chamas ardentes e famintas.
A reunião estava encerrada.
Eles recolheram seus pertences, e um por um, eles saíram da sala. Kyle saiu por último e trancou a porta da sala.
Lá fora, no meio da chuva monstruosa e grotesca, a tempestade continuava matando mais árvores.
Cada vez mais, as tempestades seguiam queimando a vegetação, com voracidade e ódio, e um desejo imbatível de matar e destruir tudo ao redor.

Escolhidos - Entre os Hereges e Amantes [Livro 1]Onde histórias criam vida. Descubra agora