2 - Memórias

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Após Octavius ter se dissolvido no ar, Maeve continou olhando para o lugar onde ele estivera em pé conversando com ela apenas alguns instantes atrás, e ela não pôde evitar se perguntar se todo aquele diálogo teria sido real ou apenas fruto da sua imaginação. Ela poderia estar tão desesperada por respostas que estaria fantasiando coisas impossíveis e absurda.
Ela não sabia. A única certeza que tinha era que estava com medo. Com medo do irreal, com medo do novo. O desconhecido a assustava. No entanto, se Octavius existisse realmente, ele deixara bem claro que se ela quisesse descobrir o que estava acontecendo à sua volta e desvendar o mistério por trás do sumiço da mãe, ela teria que dizer adeus para as coisas que achava conhecer e estava acostumada a ver. Talvez Octavius quisesse insinuar que existiam mais coisas escondidas no mundo além daquelas que Maeve já tinha conhecimento.
Mas isso não era possível. Era?
Seria possível que existisse um outro mundo escondido dentro do nosso?
Mas por que não existiria?
Ela lembrou do que Octavius lhe disse, uma frase que mesmo após ser dita ficou ecoando em sua cabeça: " Coisas estranhas acontecem todos os dias, com todo mundo. "
Se isso fosse mesmo verdade, então era justo que houvesse uma explicação lógica e racional para isso. E, pensando nessas coisas que acabaram de acontecer, ela se perguntou se Octavius voltaria novamente para vê-la. Ele disse que sempre estaria de olho nela. Maeve só não sabia se aquilo era bom ou ruim, e provavelmente o motivo de ela estar tão preocupada com a aparição repentina de Octavius era que jamais as sombras vieram falar diretamente com ela em uma forma humana. Quer dizer, ela ouvia sussurros no escuro e vozes nas sombras, mas elas nunca vieram de uma pessoa física, e Octavius parecia bastante palpável e material, embora ela não o tivesse tocado. Só sentiu que ele irradiava poder. Muito poder.
Já que as dúvidas não paravam de surgir e ela não podia dar respostas aceitáveis para si mesma, Maeve voltou a dormir. Demorou um tempo, mas o sono veio.
Então ela sonhou mais uma vez com o dia em que a mãe sumira diante dos seus olhos. O dia em que a felicidade dela virou cinzas.

Era um dia calmo e ensolarado de domingo, e ela e a mãe estavam indo de carro para a igreja, enquanto o pai estava em casa, dormindo tranquilamente.
Maeve e Katrina estavam tão sorridentes e alegres naquele dia que até mesmo o mar poderia secar com uma cena tão linda como aquela. Mãe e filha, juntas, se divertindo. Era a coisa mais bela que alguém poderia presenciar.
Quando chegaram na igreja St. Thomas, elas sentaram-se no mesmo banco de sempre, o terceiro na fileira da esquerda. Era só uma questão de minutos até que o padre Octavian chegasse para dar início às palestras motivacionais e por fim, a missa.
Enquanto esperava, Maeve notou que as pessoas que estavam chegando na nave principal da igreja estavam todas vestidas de branco, com mantos com capuzes cobrindo seus rostos. Apenas mãos pálidas eram visíveis sob os trajes. Katrina não pareceu notar. Estava ocupada demais batendo o pé no chão como fazia quando estava nervosa e olhando ansiosamente para a direção da sala de sacristia, onde Octavian estava se preparando.
- Vou ver se está tudo bem com Octavian, ele está demorando muito - falou Katrina, levantando do banco e lançando um olhar mortífero para um dos homens vestidos de branco. A mãe de Maeve sussurrou algo parecido com " Amantes " e correu para a sacristia atrás de Octavian.
Ela voltou pouco tempo depois e retomou seu lugar ao lado da filha.
- Algum desses psicopatas veio falar com você? - sussurrou Katrina.
- Não - respondeu Maeve, assustada.
- Ótimo. Aconteça o que acontecer, não olhe, não fale, não se aproxime de nem um deles. Entendeu?
- Sim... Mas por quê?
- Apenas faça o que estou lhe dizendo.
- Eu farei, mãe - Maeve olhou para os olhos verdes da mãe com sinceridade.
- Você será para sempre a minha garotinha - Katrina beijou o topo da cabeça loira de Maeve e sorriu.
Sem entender, Maeve tentou perguntar o que estava acontecendo, mas Octavian chegou e começou a falar, de cima do altar. Seu cabelo cor de areia estava desarrumado como sempre, e os olhos cinzentos pareciam assassinos.
- É um prazer ter vocês conosco esta manhã - ele disse, calmamente. - Só é uma pena que não ficarão por muito mais tempo, irmãos.
Maeve olhou ao redor. As senhoras que costumavam assistir as missas dominicais com ela estavam lá, como de costume, mas com uma expressão de confusão estampadas no rosto. O que Octavian estava fazendo?
Ela não teve tempo de pensar. Um dos homens vestidos no manto branco levantou abrupta e rapidamente e apontou uma adaga para Octavian.
- Como ousa nos chamar de irmãos, herege bastardo?
Um coro de burburinho surgiu ao redor de Maeve: " Herege? Bastardo? Como pode um padre ser herege? Que absurdo! "
As pessoas que vieram assistir à missa ficaram assustadas e inquietas, sem saber o que aquilo significava.
- Ora, somos todos filhos da mesma mãe e do mesmo pai, como podemos ser bastardos? - Octavian deu um sorriso provocador.
O homem de branco irou-se.
- Como é capaz de pronunciar tamanha calúnia? Vocês são a doença que Allard jamais poderá curar. Vocês são um erro!
- Mas se nós não tivéssemos nascido, vocês também não estariam aqui. Foram criados por nossa causa.
- Não importa. Nossa raça foi criada para exterminar a sua, e é isso que faremos. Mataremos todos vocês e iremos restaurar a paz no mundo.
- Sua miopia me surpreende, Paollus. Quando vocês, Amantes, irão se dar conta que os Hereges não são uma ameaça?
Mais murmúrios assustados. Algumas pessoas fugiram às pressas, enquanto outras assistiam, antônimas demais para agir. A própria Maeve queria fugir, mas quando fez menção de se levantar, Katrina puxou a filha de volta para o assento.
O homem de branco que discutia com Octavian puxou o capuz para baixo, revelando um rosto belo esculpido, uma barba rala, lábios apertados, olhos azuis eletrizantes e um cabelo preto precisamente penteado que caía até os ombros.
Paollus rugiu de raiva.
- Nunca, jamais iremos nos render a você. Nosso Pai Supremos passou sua semente de conhecimento há gerações, sabemos muito bem o que vocês pretendem. Então nos dê logo o Oráculo, antes que poeira se torne a decoração deste templo.
Katrina congelou ao lado de Maeve.
- Os Escolhidos - Octavian falou, abalado. - As crianças que irão selar o destino dos Três Mundos. A hora chegou.
- Sim, e é por esse motivo que a Tribo está aqui hoje - Paollus gesticulou para os companheiros de manto branco. - Nossa espécie finalmente terá o ajustes de conta que tanto esperávamos.
- Se quiserem o Oráculo - falou Octavian - , terão que me matar antes.
- Com o maior prazer - Paollus sorriu cruelmente. E lançou a adaga contra a cabeça de Octavian. Porém, ele foi mais ágil, inclinando a coluna para trás antes que fosse decapitado. Ele olhou para Maeve e Katrina.
- Saiam daqui. AGORA! - ele disse com urgência.
- Não sem lutar antes - Katrina disse, a voz trêmula.
- É isso que eles querem. Saiam logo daqui. Por favor. Posso dar conta deles.
Octavian se esquivou de mais uma adaga arremessada por Paollus e juntou as mãos, como se fosse orar. Então havia agora vários Octavian's. Um, dois, três, quatro, cinco... Eram tantos que Maeve não soube distinguir quem era o verdadeiro.
Uma das cópias de Octavian pulou sobre uma mulher de manto branco e lhe deu uma chave de braço enquanto esta se debatia. Outra das cópias puxou uma faca e travava um duelo corpo a corpo com um dos homens. Paollus estava girando, procurando o Octavian verdadeiro, enquanto seus companheiros lutavam com as cópias à sua volta, até que por fim Octavian saltou no ar e chutou, arrancando um punhal da mão de Paollus. Maeve assistiu em choque enquanto Octavian atacava novamente, dando uma joelhada na barriga do adversário. Ele lançou a cabeça para a frente com força, acertando a de Paollus com a sua própria. Paollus cambaleou para trás, enquanto Octavian chegava por trás dele e o puxava pelos ombros, arremessando-o no chão a seus pés.
Maeve e Katrina aproveitaram a chance para fugir. As portas duplas eram uma grande confusão, pois todos que estavam dentro da igreja estavam demandando para fora do caos da batalha.
Maeve e a mãe entraram dentro do carro e pisaram para fora dali. Katrina acelerava, enquanto Maeve tentava se recompôr do que vira na igreja.
- Confie em Octavian - murmurou Katrina, quase sem voz. - Não fique do lado dos Amantes. Aprenda a enxergar além da Membrana. Confie em Octavian. Não fique com medo. Confie em Octavian. Me encontre. A hora está próxima. Confie em Octavian. Seja forte, e acredite no que vê e no que ouve. Porque ignorar a verdade nunca é a solução.
Maeve não teve tempo de responder. Uma figura estranha estava na frente da pista, parada. Parecia uma mulher. Maeve pensou que Katrina fosse reduzir a velocidade, mas ao invés de parar o carro, ela acelerou ainda mais. Ia atropelar a mulher.
Mas quando a frente do carro estava prestes a colidir com a mulher, ela simplesmente levantou o braço e o carro parou de repente, com tanta força e brutalidade que mãe e filha teriam sido arremessadas para fora caso não estivessem usando o cinto de segurança.
Tontas, elas não fizeram nada além de apalpar a cabeça para expulsar a dor do impacto. Parecia que o carro tinha batido contra alguma parede invisível ou algo do tipo.
A mulher que estava no meio da pista contornou o carro e abriu a porta do motorista com uma delicadeza incrível. Ela abaixou o capuz, revelando uma cabeleira negra que caía até a cintura, e um rosto alvo como papel.
- Justine - Katrina sussurou, fraca.
- Olá, Kat - falou a outra mulher, radiante. - Espero que não leve pelo lado pessoal.
- Maeve, lembre do que eu disse. Aprenda a enxergar além da Membrana, e confie nele, acima de tudo. Eu te amo.
Justine sorriu, em seguida houve uma explosão de luz branca. Maeve fechou os olhos por um segundo por causa da ofuscante luz branca e quando tornou a abrí-los, Justine e a mãe já não estavam mais lá.
Ela não teve tempo de sentir medo, porque antes de sequer poder pensar em gritar ou chorar, a escuridão já tinha tomado conta dela.
Então Maeve entregou os pontos. E desmaiou.

Maeve acordou, desesperada. A manhã já estava chegando, e os primeiros raios de sol estavam entrando pelas frestas da sua janela.
Ela se levantou da cama devagar e foi até o banheiro do corredor o mais silenciosamente que pôde para não acordar o pai, que dormia no quarto ao lado do dela.
Ela trancou-se lá dentro, encarando seu reflexo no espelho enquanto lágrimas de dor e saudades escorriam pelo seu rosto.

Escolhidos - Entre os Hereges e Amantes [Livro 1]Onde histórias criam vida. Descubra agora