20 - O Sopro da Vida

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As portas duplas de madeira velha da igreja foram abertas com violência. Maeve e Rick entraram com ímpeto na nave, carregando Thaylla em seus braços, ainda inconsciente e sangrando.
- OCTAVIAN - Rick estava berrando, desesperado. - OCTAVIAN!
Octavian se materializou em meio a uma nuvem de fumaça negra diante deles vestindo uma túnica acinzentada, pálido como osso ao ver Thaylla à beira da morte. Ele não fez perguntas; gesticulou as mãos para uma mesa próxima ao altar, fazendo todos os objetos que estavam sobre ela voarem para longe e se espatifar no chão.
- Rápido, ponham-na aqui! - Octavian ordenou, a voz trêmula.
Maeve e Rick fizeram o que lhes foi pedido, deitando o corpo inerte de Thaylla na mesa com todo o cuidado. Ao ouvir a gritaria no andar de baixo, Willen, Kyle, Emily e Jully desceram até lá e ficaram em choque ao ver o caos que se espalhava.
- O que aconteceu? - Jully perguntou, histérica.
- Uma emboscada. Emboscada. - Rick gaguejou, adquirindo um tom de pele mais pálido que o normal. Seus olhos verdes estavam esbugalhados. - Fomos atacados por um grupo de Amantes do Alvorecer enquanto estávamos vindo para cá. Thaylla... acabou ferida.
- E o que vocês estão esperando? Tirem logo essa faca dela!
Jully fez menção de retirar o punhal alojado no peito de Thaylla, mas Maeve a impediu, segurando com força sua mão.
- Não faça isso - disse, cansada. - O punhal está contendo o sangramento. Se tirarmos, ela pode sofrer uma hemorragia, agravar mais a situação.
Octavian baixou a cabeça em direção ao rosto de Thaylla e deixou o ouvido próximo ao nariz da menina.
- Ela ainda está viva. Continua respirando. - O alívio de Octavian era claro, mas a preocupação logo tomou conta dele. - Não temos tempo. Precisamos fazer alguma coisa.
- Que tal deixá-la morrer? - Kyle sugeriu, indiferente. - É uma perca de tempo. Não podemos fazer nada para salvá-la.
Maeve sentiu como se alguém tivesse lhe dado um forte soco no estômago. Como Kyle podia ser tão insensível?, pensou. Alguém estava prestes a morrer! Todos olharam chocados para ele, mas foi a reação de Willen que os surpreendeu. Ele fez um longo gesto com o braço, como se estivesse empurrando o ar, e Kyle foi lançado para trás, voando longe, até suas costas atingirem com força o chão da igreja.
- VOCÊ PODERIA MORRER NO LUGAR DELA, NINGUÉM SENTIRIA SUA FALTA! - Willen gritou, girando a mão e criando uma bola de fogo, preparando-se para acertar Kyle novamente. Emily se lançou em frente a Willen e o segurou pelos braços.
- Willen, calma, calma. Você precisa manter a cabeça no lugar - ela o acalmou. - Você precisa estar bem. Precisamos de você. Thaylla precisa de você. Por favor.
Willen pareceu relaxar. A tensão deixou seus músculos, sua respiração desacelerou; a bola flamejante em suas mãos se extinguiu. Emily em seguida olhou para Kyle, que agora estava se levantando, e disse:
- Francamente, Kyle Denvers. Você não sabe a hora de ficar calado? Thaylla está morrendo!
- Se dependesse de mim, ela já estaria queimando no inferno, assim como o resto de vocês. - Kyle disse com nítido desprezo e com passos longos e rápidos abriu as portas da igreja e saiu, deixando os amigos para trás.
Maeve assistiu tudo atônita, enquanto ajudava Octavian a pegar suprimentos para tratar de Thaylla.
- Não se preocupem com ele - Emily disse. - Kyle não sabe o que fala.
Willen olhou para eles como quem pede desculpas, e depois ajudou os outros a fazer os curativos em Thaylla. Jully estava recitando algum feitiço em voz baixa, unindo as palmas das mãos e tocando a ponta dos dedos enquanto rezava.
A cabeça de Maeve estava a mil. Ela ainda estava tremendo, os pensamentos dela eram borrões da batalha que acabara de lutar. Imagens desconexas passavam pela sua cabeça. A imagem de Thaylla sendo esfaqueada não saía da sua mente, era a única lembrança nítida.
Thaylla.
O som nauseante da lâmina penetrando a carne fazia ecos em seus ouvidos.
Mesmo que a conhecesse há pouco tempo e que não tivesse razão alguma para gostar dela, Maeve não pôde evitar se sentir despedaçada e perdida, como se houvesse perdido uma parte essencial da sua existência. Tudo que tinha feito, tudo que tinha visto, era demais para aguentar sozinha. Não tinha forças para lidar com mais uma perda. Não depois de Katrina. E era por essa razão, por já ter sentido na pele o prazer de amar e a dor de perder, que ela não ia permitir que Octavian e os outros perdessem Thaylla assim como ela havia perdido a mãe. Eles eram uma família, todos eles, e tinham cuidado de Maeve quando ela mais precisou. Era o mínimo que podia fazer para agradecer.
- Octavian - ela chamou, tentando manter a voz firme -, o que posso fazer para ajudar?
- Pode pegar algumas folhas de menta e urtiga para mim lá em cima, por favor? Seus amigos estão lá, aliás. - Octavian estava obviamente abalado com tudo aquilo, mas estava se esforçando para manter a cabeça no lugar. Willen, Jully e Emily tentavam consolar Rick agora, chorando silenciosamente enquanto observava o corpo branco de Thaylla deitado na mesa.
Maeve inspirou fundo e foi fazer o que lhe foi mandado. Ao subir as escadas e chegar na cozinha, encontrou Joan e Brenda. Ela correu para abraçá-los e ficou ali durante um bom tempo. Joan parecia estar melhor do ferimento nas costas, Brenda estava ilesa.
- Como vocês estão? - Maeve perguntou. A hora da verdade havia chegado.
- Assustados, obviamente. - Joan parecia abalado, e não era para menos. - O que foi tudo aquilo que aconteceu? Quem é você?
Maeve já esperava aquela reação.
- Eu sou Maeve LeBlanc. Eu sou a melhor amiga de vocês. Eu continuo sendo eu.
- Acho que o que ele quis perguntar é: o que é você? - Brenda simplificou.
- Não temos tempo para isso agora, tudo bem? Thaylla está ferida e precisa de ajuda.
Brenda assentiu, compreensiva, mas Joan continuava de cara amarrada. Maeve pegou as ervas que Octavian pediu no armário e desceu com os amigos ao seu encalço.
Ao chegar lá, estavam todos ao redor de Thaylla. Ela ainda estava imóvel. Octavian improvisou um caldeirão e se empenhou em preparar algum tipo de poção com as ervas que Maeve lhe deu. Ele arrancou um fio de cabelo de Thaylla e pôs no caldeirão, misturando a compostura com uma longa colher, murmurando cânticos ininteligíveis enquanto uma fumaça com cheiro adocicado rodopiava pelo ar, subindo até o teto. Rick estava desconsolado, acariciando a mão gelada de Thaylla. Maeve não pôde evitar sentir pena de Rick, que costumava sempre ser tão alegre e alto astral, mas aquele garoto que ela havia conhecido poucos dias atrás já não existia naquele momento. Ela queria conversar com ele, lhe oferecer consolo, mas não sabia o que dizer ou fazer. Todos ali estavam abatidos demais para falar ou fazer qualquer coisa a não ser esperar.
Para quebrar o silêncio, Emily fez diversas perguntas sobre o ataque, como por exemplo quantos Amantes eram, quem havia dado a ordem do cessar fogo, se era provável que eles atacassem novamente enquanto estavam indefesos. Maeve lembrou do líder do grupo, Yooran, e perguntou-se o porquê da decisão dele em abandonar o ataque, mas isso era um assunto para outra hora. Havia algo mais importante acontecendo que exigia sua total atenção.
- Não precisam ficar esperando aqui. A mistura pode demorar um pouco para ficar pronta - Octavian avisou. - E não se preocupem com Thaylla. Realizei um rito de estabilidade. Por enquanto, ela está bem. Podem relaxar.
Mas nenhum deles ficou relaxado. Isso ficou óbvio pelo modo como ficaram apreensivos. O grupo começou a se dispersar, cada um calado, imerso em sua própria aflição. Rick se isolou no canto mais afastado da igreja, seus ombros tremendo de tanto chorar. Joan observou a cena, comovido. Ele não entendia o que estava acontecendo, não entendia como aquilo tudo era possível. Ele olhou para Rick, depois para Maeve e Brenda. Elas não disseram uma palavra, apenas assentiram para ele, uma maneira íntima de o incentivar a fazer o certo.
Joan criou coragem e foi até Rick, caminhando lentamente até ele para não causar alarde. Ao ouvir os passos, Rick levantou a cabeça que estava apoiada nos joelhos. Seus olhos eram uma confusão de verde e vermelho, como se alguém tivesse ateado fogo em uma floresta arborizada. Ele enxugou as lágrimas e se afastou para que Joan sentasse ao seu lado. De onde estavam, era impossível que alguém pudesse vê-los ou ouví-los.
Rick olhava fixamente para o chão, em uma óbvia tentativa de evitar contato visual. Joan pigarreou, não sabia o que falar ou como falar. Após alguns instantes tristes e silenciosos, iniciou a conversa.
- Olha, eu não sei o que está acontecendo ou quem são vocês. Nem sei  o que  vocês são. Só posso dizer que estou torcendo para Thaylla ficar bem. Ela é forte. Vai conseguir sair dessa.
- Você não a conhece. Não sabe nada sobre ela, sobre mim ou qualquer um de nós. - Rick retrucou de maneira fria, espantando Joan.
- Desculpe. Eu só queria...
Rick balançou a cabeça, puxando com força seus fios de cabelo dourados.
- Não, eu é quem peço desculpas. Nada disso é culpa sua...
- E nem sua.
- Eu sei que não é. Dei o meu melhor, fiz o que pude. Não sinto culpa em relação a isso. - Rick estava se referindo a luta que acabara de travar. - Mas eu deveria ter sido um amigo melhor. Eu poderia ter sido uma pessoa melhor para ela. Thaylla sempre foi assim, desde que a conheci, sempre tão destemida, rebelde, teimosa, impulsiva. Poderia passar horas falando sobre ela.
Joan pensou em Maeve e Brenda, suas melhores amigas desde sempre. Ele entendia o que Rick estava sentindo, e isso fez com que ele desse um fraco sorriso.
- Eu sei como é. - Joan concordou. - Mesmo com todos esses defeitos - Rick puxou ar para os pulmões, numa tentativa de parar as lágrimas, - ela sempre foi fiel a si mesma e a nós, seus amigos. Thaylla nunca fez nada que pudesse nos prejudicar. Pelo contrário: tudo que ela fazia era pensando em nós. E eu sinto tanta raiva por não ter sido bom o bastante como ela mericia. Pensei que sempre fosse tê-la ao meu lado, que nunca fôssemos nos separar, e por conta desse pensamento, nunca deixei claro o bastante meu amor por ela. Nunca disse em voz alta para ninguém, mas eu a amo. Ela tem essa fachada de durona, mas é apenas isso: uma fachada. Assim como eu tenho essa de garoto bonitão convencido que não liga para ninguém. As pessoas que mais sentem são as que mais se escondem atrás de fachadas, eu acho. - Rick riu, mas não havia humor algum no som. - Talvez nós sejamos apenas isso mesmo. Um amontoado de pessoas hipócritas, falsas e mentirosas, com medo de mostrar para o mundo quem realmente somos, do que nós temos medo.
- Você não é nada disso. - Joan disse, sem pensar. - Algumas semanas atrás, eu poderia concordar com isso. Mas não agora. Você está conversando abertamente comigo. Isso mostra o quanto você é sincero. - Joan tomou fôlego. - Você não precisa me contar tudo, não precisa ser sempre verdadeiro comigo ou qualquer outra pessoa e expor tudo que pensa ou sente, desde que seja verdadeiro consigo mesmo. Ser íntegro e leal a si vale mais que qualquer coisa.
- Você tem razão - disse Rick. - É que eu não consigo... não consigo fazer isso. Thaylla sempre esteve ao meu lado. Ela saberia o que dizer se estivesse aqui.
- Mas ela ainda está aqui. Aquele cara - Joan apontou para Octavian, - vai fazer com que ela fique bem. Não conheço vocês muito bem, mas é nítido que há um laço muito forte entre vocês. Um laço literalmente de outro mundo, sobrenatural. - Rick riu de verdade dessa vez, e Joan se sentiu satisfeito. - Pessoas morrem e nascem todos os dias. Algumas ficam e algumas vão embora. A morte, assim como a vida, é algo inevitável. Não pedimos para nascer, da mesma maneira não pedimos para morrer. Tentamos evitar a morte a todo custo, e gente normal não tem a chance de batalhar contra isso. Mas a Thaylla tem. Todos aqui estão lutando para que ela melhore. E ela vai ficar bem, de um jeito ou de outro.
Rick olhou para Joan pela primeira vez naquele dia, e sua expressão denotava o mais puro vestígio de insegurança.
- Você acredita nisso?
- Eu acredito que as pessoas que nós amamos sempre dão um jeito de voltar para nós.
Rick assentiu, parecendo menos nervoso.
- De um jeito ou de outro - ele concluiu.
Joan fez um gesto positivo com a cabeça, mas antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Octavian os chamou. Finalmente, alguns minutos depois, o unguento que Octavian preparava ficou pronto. Todos se levantaram rapidamente e foram até a mesa onde Thaylla estava deitada.
Delicadamente, com as mãos precisas de um cirurgião, Octavian retirou a lâmina do peito de Thaylla e passou um pouco da mistura de ervas no local ferido. A substância pastosa tinha uma coloração estranhamente azul que impedia o sangue de continuar jorrando pela ferida aberta. Logo depois, Octavian pegou uma tira de linho de um dos bolsos das vestes e amarrou diversas vezes nos dedos, enrolando a pequena corda inúmeras vezes, como se estivesse tentando dar um nó nos próprios dedos, fechando os olhos e inspirando profundamente no processo de amarração.
Rick e Joan olhavam tudo, sem dizer uma palavra. Willen e Emily trocaram olhares preocupados. Eles sabiam de alguma coisa.
- O que ele está fazendo? - Maeve sussurrou para ninguém em particular. Jully estava ao seu lado, tão confusa quanto Maeve.
- Ele está praticando a Oraculos Vitalle. - Willen respondeu, tenso. - É uma prática de magia antiga, onde o mago em questão transporta um terço de sua energia vital para uma pessoa que está perto da morte. É arriscada e exige muita concentração, mas na maioria das vezes dá bons resultados.
- Vamos torcer para que dessa vez também tenhamos bons resultados - Emily respondeu com o olhar distante, apreensiva.
Maeve se calou e voltou a observar Octavian realizar sua mágica. Ela esperava que tudo desse certo. Tinha que dar certo.
Thaylla não podia morrer.
Não podia. Não devia. Não era certo.
Octavian estava recitando cantigas, orações e preces em voz alta perto de onde Thaylla estava deitada, numa língua desconhecida aos ouvidos de Maeve. Enquanto realizava o feitiço, continuava entrelaçando os dedos com o linho, como duas crianças brincam de cama-de-gato. A claridade do sol que provinha da janela vítrea atrás dele estava dando lugar a uma gélida nuvem fria, trazendo horror e tristeza ao ambiente. Tudo estava cinza, um tom morto e mórbido. A única luz vinha do próprio Octavian, rodeado por uma auréola brilhante radiante de vida e poder.
Havia esperança no local. Havia amor. Havia um mínimo de alegria. Octavian brilhava tanto que os olhos de Maeve doíam com o esforço de olhar para ele, então ela observou Thaylla. O corpo dela estava envolto pela mesma luz que parecia irradiar de Octavian. Analisando bem, a luz que rodeava Thaylla era de fato  a mesma  que irradiava de Octavian, como se de algum modo ele a estivesse transferindo e Thaylla a estivesse absorvendo, como uma planta absorve água e o calor do sol. Eles estavam ligados pela luz, uma forma de corrente luminar. Era como um bebê recém-nascido preso ao cordão umbilical que o conectava à mãe.
Octavian permaneceu de olhos fechados, ainda mais concentrado em realizar seu feitiço. A igreja continuava em um tom de cor deprimente, quase preto e branco. Maeve olhou para sua mão e a viu cinza. Tudo ao seu redor era... não há palavras para descrever a sensação que os presentes ali desfrutavam. A única luz do cômodo os cegava.
Octavian estava conseguindo, estava quase lá...
Ele abriu os olhos de repente, como se tivesse acordado de um terrível pesadelo, respirando de forma brusca e entrecortada, engasgando com o ar, sentindo-se sufocado.
As cores voltaram instantaneamente. Estava claro novamente. Já não havia mais uma forte luz branca e dourada ali.
A conexão entre ele e Thaylla havia sido rompida. Ele parou de cantar e movimentar as mãos e os dedos.
Octavian estava com lágrimas nos olhos, o rosto uma verdadeira máscara de cólera.
- Eu não consigo sentir - disse Octavian. - Não consigo senti-la mais aqui.
- Como assim? - Jully perguntou, recesosa.
- Para o feitiço funcionar, a pessoa que está recebendo a vida do doador precisa estar com o mínimo de sinal vital. Ainda precisa estar viva. - Octavian explicou, exausto, lágrimas acumulando no canto dos olhos. - Não consegui encontrar reação da parte dela. A conexão foi interrompida. Os laços foram cortados. Já não há mais ninguém aí para receber vida. - Octavian indicou o corpo de Thyalla com a cabeça.
Maeve não queria perguntar, pois temia já saber a resposta. Ela sabia o que aquilo significava, mas estava relutante em acreditar.
- Isso significa...
- Ela está morta - disse Octavian. - Thaylla está morta.
Não. Não. Não.
O grito de alguém cortou o ar. As vidraças da igreja começaram a rachar, partindo-se logo depois. Uma forte ventania abriu com força as portas de madeira enquanto o mundo chorava. Maeve olhou para trás bem a tempo de ver Rick e Jully caírem de joelhos, aos prantos. Emily gritava com Octavian, implorando para ele fazer mais alguma coisa. Willen estava perplexo, parado no lugar, o olhar perdido. Brenda e Joan estavam abraçados, sendo açoitados pela chuva e a forte ventania que ameaçava botar a igreja abaixo. Octavian aparentava estar desnorteado, nada mais fazia sentido. Uma de suas aprendizes estava morta.
Morta.
Morta.
Thaylla estava morta.
Não.
Não.
Não. Morta. Não. Não morta.
Era errado. Thaylla não podia estar morta.
Maeve olhou para o corpo da garota.
O corpo morto.
Thaylla estava branca igual a gesso. Seus lábios, outrora rosados e carnudos, estavam agora azuis, gélidos, pálidos. Mortos.
Maeve ouvia gritos, choros e lamúrias ao seu redor. A chuva estava começando a molhar seu corpo, deixando seu cabelo e roupas grudentos. Ela odiava essa sensação. Mas não sentia mais isso.
Ela se sentia viva. Viva demais, até.
Maeve estava viva e Thaylla estava morta.
Uma viva demais; a outra, morta demais.
Todos choravam. O céu chorava. Sua visão estava ficando borrada. O ambiente que a rodeava perdia o foco.
Ela estava parada. Estoica. Observando o corpo morto de Thaylla. Seu cérebro não respondia a seus comandos.
Maeve então sentiu algo puxando-a para mais perto de Thaylla. Uma mão invisível, convidando-a a se aproximar. Não sabia o que estava fazendo. Apenas sabia que aquilo era o certo a se fazer, algo que apenas ela poderia fazer.
Se aproximou cada vez mais da mesa, até que ficou frente a frente com o corpo de Thaylla.
Silêncio.
Maeve sentiu o peso dos olhares de seus companheiros em suas costas, mas ninguém fez nada para impedir.
- O que ela está fazendo? - alguém perguntou. Ela não sabia quem, e não importava.
Maeve tocou a testa machucada de Thaylla. O corte em seu peito fechara, deixando apenas uma cicatriz.
Ela era tão linda. Parecia brava e corajosa até mesmo morta.
Maeve tocou a bochecha de Thaylla. Algo em seu interior estava se agitando com força, querendo explodir, libertar-se. Era uma força nova, incomum, inexplorada. Nunca experimentada. Sua pele formigou. Nunca em toda sua vida se sentira tão imponente.
A boca de Thaylla estava entreaberta. Os olhos fechados. A respiração interrompida para sempre pelo golpe fatal e impiedoso da morte.
Maeve aproximou seu rosto cada vez mais, deixando sua boca apenas a centímetros da boca de Thaylla.
Então...
Maeve respirou.
Inspirou profundamente pelo nariz, expirando o ar de seus pulmões pela boca depois, soprando no rosto de Thaylla. O cabelo de Thaylla voou ao redor de seu rosto, como se tivessem ligado um ventilador bem na cara dela. O ar expirado por Maeve adentrou seus lábios abertos.
Maeve voltou a si.
O transe havia chegado ao fim.
Ela levantou o rosto rapidamente e encarou os amigos, confusa. As expressões que viu eram uma mescla de horror e espanto.
O que havia acabado de acontecer?
Antes que alguém pudesse reagir, um ruído lhes chamou a atenção.
Maeve olhou para trás. Os olhares estavam fixos em Thaylla.
De início, nada aconteceu. Ela continuava deitada, imóvel.
Esperaram um pouco mais.
Um sutil movimento de pálpebras.
Um círculo se formou ao redor da mesa.
Estavam todos atentos.
Ninguém respirava.
Ninguém se mexia.
Continuaram observando, esperando qualquer sinal de mudança.
Ela ainda estava imóvel.
Continuava morta.
Não se mexia.
Esperaram.
Esperaram.
Esperaram...
Thaylla abriu os olhos e fitou o teto, sentando-se ereta na mesa no momento seguinte, acordada e viva.

Escolhidos - Entre os Hereges e Amantes [Livro 1]Onde histórias criam vida. Descubra agora