A chuva estava batendo forte contra as vidraças da janela, tempestades e relâmpagos chegavam com mais fúria e intensidade a cada instante que se passava.
Lá fora, o mundo estava absorto em escuridão. As trevas dominavam o universo.
O breu absoluto ameaçava engolir o mundo e quem estivesse no seu caminho. Lá no alto, pendendo no céu, os raios místicos da lua proporcionavam pouca luminosidade.
Não havia porto seguro.
Não havia para onde fugir.
O frio era de gelar os ossos, de congelar a alma.
Os sons do dilúvio cadente lembravam o choro de mil espíritos torturados gritando em agonia e desespero. O vento tocando nos galhos das árvores, fazendo-as sacudir, apenas contribuía para deixar tudo mais horripilante.
Maeve LeBlanc acordou alarmada, com a respiração entrecortada difícil, e passou a mão na testa para enxugar o suor que ali se acumulava. Continuou deitada em silêncio na cama sob a proteção das cobertas, como se fosse uma garotinha assustada após assistir a um filme de terror.
Sua vida, de certo modo, havia se tornado um filme de terror, pensando bem. Um daqueles bem bizarros. Não havia outra explicação para os estranhos fenômenos que a rodeavam. As sombras, as vozes, mas o pior de tudo eram os sonhos...
Esses sim não a deixavam em paz.
Tivera o mesmo pesadelo àquela noite.
O mesmo sonho que a atormentava havia seis meses.
Os remédios para dormir já não a ajudavam mais havia muito tempo. Drogar-se com sonífero era o mesmo que nada. Não havia nenhum medicamento que pudesse ajudá-la. Aparentemente, ser diagnosticada como esquizofrênica não tinha sido o bastante. Talvez o próximo passo do seu psiquiatra fosse interná-la em um hospício, ou quem sabe prendê-la em uma camisa de força.
Maeve já não sabia mais distinguir a fantasia da realidade. Ela tinha absoluta certeza de que tudo o que acontecia com ela era real; mas ao mesmo tempo, o seu pai e os inúmeros especialistas em saúde mental que ela se consultava tentavam convencê-la do contrário, que tudo não passava da sua imaginação fértil, e que todas aquelas coisas estranhas que ela vinha vendo eram apenas sequelas e consequências do trauma sofrido.
Essa confusão prejudicava a vida de Maeve em todos os sentidos possíveis. Atrapalhava sua concentração, seu desempenho na escola, o seu sono. Principalmente o seu sono. Não conseguira dormir direito desde o desaparecimento da mãe: ela estava sempre presente em seus pesadelos.
Não, não.
Sua insônia era algo muito mais sério.
Mais grave.
Surreal, até.
A escolha de acreditar no sobrenatural ou não era inteira e unicamente dela. Se optasse por crer em coisas de outro mundo, encontraria algum conforto nisso. Caso contrário, se desse ouvidos aos psiquiatras, teria de aceitar o fato de estar maluca. Nenhuma das duas opções parecia ser boa, de qualquer modo. Era um belo dilema.
Ela ficou deitada na cama olhando o teto fixamente, os olhos se adaptando com a escuridão do quarto. Não havia nada que ela pudesse fazer. Já estava acostumada com os ataques de pânico àquela altura, e sabia que não tinha nada que pudesse fazer para impedi-los.
Estava acostumada, mas ainda sentia medo. Aquilo já estava começando a deixá-la perturbada. Inicialmente, Maeve pensara que estava tendo alucinações, que nada daquilo era verdade. Mas com o passar do tempo, essas aparentes " alucinações " foram se mostrando cada vez mais presentes, bem mais... reais. Os sonhos, as vozes, as sombras... Tudo. Ela já estava começando a se perguntar se não estava louca, como todos achavam. Duvidava da sua própria sanidade. Não tinha certeza se era confiável.
Desde que sua mãe desaparecera coisas sinistras e inexplicáveis começaram a acontecer, pondo a sua mentalidade à prova.
Como sempre acontecia, pensar em sua mãe encheu o coração de Maeve de angústia.
Maeve ainda não conseguia entender como a mãe havia sumido. Em um momento, elas duas estavam dentro do carro, com a mãe tendo a mais estranha conversa com uma mulher vestida de branco, e, em seguida, Maeve fechou os olhos por alguns míseros e triviais segundos e quando voltou a abri-los, a mãe e a sutil mulher já não estavam mais lá.
Ela tentou tirar aquele pensamento da cabeça, mas já era tarde demais.
As memórias já estavam lá para atormentá-la, e ela não iria se ver livre delas tão cedo.
A garota continuou deitada na cama, imóvel, a respiração irregular. Esperou para ver se conseguia cair nos braços do sono novamente, até que se flagrou pensando nos acontecimentos dos últimos meses e ficou surpresa quando chegou à conclusão do quanto era forte. Se outra pessoa estivesse passando pela atual situação dela, sem dúvida já teria enlouquecido completamente. Afinal, era muita coisa pra suportar e entender. Mas ela estava encarando aquele novo capítulo da sua vida com toda força e coragem que conseguia reunir dentro de si, e sentiu-se grata ao menos por isso, por conseguir ser um pilar de bravura. Ela não sabia como conseguia suportar tudo aquilo sem se jogar de uma ponte, mas ainda estava ali, viva e confiante, suportando aquelas dúvidas e enfrentando seus medos há seis meses. Pela primeira vez, sentiu-se grata por ser capaz de sentir medo. Ele a ajudava a criar mais forças.
A luz de um relâmpago penetrou pelas janelas e por alguns instantes o quarto foi tomado por uma luminosidade branca ofuscante, tão intensa que Maeve precisou cobrir os olhos com a mão. Esse rápido momento de claridade foi o bastante para a menina notar uma massa escura e maligna se contorcendo na parede do quarto.
De cara ela achou que fosse apenas mais uma sombra, aquelas que estavam sempre à espreita, mas logo a massa irregular começou a criar forma e a ficar cada vez mais sólida e densa, avolumando-se até ficar na altura de um homem.
Ela se encolheu nos cobertores, estóica, enquanto a figura se aproximava silenciosamente da cama. Por fora estava tranquila e calma como a brisa do verão. Por dentro, ela estava agitada e violenta como o mar numa noite de tempestades. Manteu a expressão impassível, enquanto seu estômago começava a ficar embrulhado.
Maeve fechou os olhos e preparou-se internamente para o pior, mas após alguns instantes, quando reuniu coragem suficiente para tornar a abir os olhos, o homem ( se é que podia ser chamado assim ), estava olhando para ela, paciente, e absolutamente concentrado em observá-la.
Maeve olhou seu rosto com atenção. Os olhos eram cinzentos, a pele gélida e pálida e um emaranhado cabelo da cor da palha. Ele estava envolto em um manto preto com capuz, e era difícil distinguir suas feições no breu do ambiente. Seu rosto também não estava muito visível ao ponto de reconhecê-lo. Mas ela tinha a inabalável certeza de uma coisa: ele irradiava poder.
Incapaz de desviar o olhar do intruso, Maeve encontrou a voz e abriu a boca para falar, mas ele foi mais rápido e a interrompeu antes mesmo que ela começasse.
- Não precisa ficar assustada, ou com desconfiança em relação a mim, pequena guerreira. Estou aqui apenas para te orientar.
- Antes de tudo, quem é você? - Maeve perguntou, e para sua surpresa sua voz estava contida e calma, não denunciando o pavor que realmente sentia.
- Sou apenas um conselheiro, mentor, um amigo... Use o termo que achar mais apropriado.
- Certo... Mas o que você quer comigo, exatamente?
- Quero ajudá-la a entender.
- Deve estar falando da minha mãe. - Uma fagulha de esperança acendeu em seu peito.
- Sobre isso, sim. Mas também há outras coisas mais importantes a serem discutidas.
- Nada é mais importante que minha mãe - Maeve elevou a voz mais do que devia e instantaneamente se arrependeu. O pai estava dormindo no quarto ao lado.
O homem feito de sombras continuou inabalável perante a grosseria de Maeve.
- Só porque estamos acostumados a conviver com uma pessoa não significa que a conhecemos verdadeiramente - o homem das sombras falou calmamente e fez um ruído que se assemelhava a um suspiro.
- O que quer dizer com isso?
- Não quero insinuar nada, nem estragar a imagem perfeita que tem de Katrina, mas algumas verdades não devem ser escondidas.
- Como sabe o nome da minha mãe?
- Esta não é a pergunta certa a se fazer. Teremos tempo daqui para a frente para falar sobre isso.
- Onde ela está?
- Mais perto do que você imagina.
- O que houve com ela? - Maeve sabia que estava fazendo o papel de tola com tantas perguntas, mas ela tinha a consciência de que as respostas eram importantes. Era a primeira pista verdadeira que ela tinha da mãe. Os policiais e os detetives envolvidos no caso não conseguiam encontrar nada de útil, mas esse estranho podia ter informações verídicas para oferecer.
Mas a resposta dele a decepcionou:
- Você não está pronta para saber, ainda não. É muito cedo. Há outras coisas que você precisa saber antes.
- Pode me dizer ao menos o seu nome? Isso é algo que preciso saber - Maeve retrucou.
- Pode me chamar de Octavius. Por enquanto.
- Então, Octavius, o que é você?
- Um Herege.
- Um herege do tipo... Aquelas pessoas que são uma espécie de satanistas e que odeiam Deus e suas maravilhas angelicais?
- Não esse tipo de herege - Octavius respondeu com paciência. - Vocês, Ignorantes que Andam, costumam confundir. Não somos esse tipo de Hereges.
- Ignorantes que Andam? " Não somos esse tipo de hereges " ? Tudo bem, é muita coisa para que eu possa entender.
- Não posso explicar melhor, e nem fazer um resumo do que sou exatamente... A menos que você queira.
- Isso vai ajudar a trazer minha mãe de volta? - Maeve perguntou, ansiosa.
- Possivelmente. Você precisa entender a história de Katrina para entender o que levou o sequestro dela a acontecer.
- Sequestro?
- Nós não temos certeza, mas um de nós acha que sua mãe foi raptada.
- Por quem?
Octavius fez uma pausa para encontrar as palavras certas antes de continuar:
- Maeve, entenda: coisas inexplicáveis e estranhas acontecem todos os dias, com todo mundo. Você pode achar que é uma coisa sem lógica e irracional, mas se procurar mais a fundo, saberá que tudo acontece por uma razão, uma razão que não compreendemos, e que coisas aparentemente " inexplicáveis " tem uma explicação coerente para as inevitáveis perguntas que ficam martelando em sua cabeça.
- Eu só sei que nós últimos seis meses tenho sido atormentada por sombras esquisitas, vozes irreconhecíveis e sonhos desconexos que não consigo entender. Isso tudo está me destruindo, não consigo lidar com essas coisas. Minha sanidade vai se esvair como a minha alegria.
-Você pode evitar. Basta querer.
- Me diga como acabar isso. Eu aceito.
- Precisa ter certeza do que quer antes de fazer algo por impulso.
- Tenho certeza do que quero.
- Vamos fazer o seguinte - Octavius parecia pensador -, estou indo embora e deixo com você uma escolha.
- Diga - disse Maeve, determinada.
- Você terá que escolher entre descobrir a verdade pela qual sua mãe desapareceu e você vem sendo assombrada, e ficar neste mundo que você julga conhecer, ou se ver livre de perturbações e descobrir o paradeiro de Katrina e conhecer um mundo totalmente novo e nunca explorado aos olhos de Ignorantes como você.
Maeve tentou não ficar ofendida.
- A escolha é sua - finalizou Octavius.
- E quando eu decidir... Como poderei encontrar você? - ela perguntou.
- Ah, não se preocupe com isso. Estarei sempre de olho em você.
E com isso, ele se dissolveu em uma nuvem de fumaça escura, tão subitamente como tinha chegado.
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Escolhidos - Entre os Hereges e Amantes [Livro 1]
FantasyTudo o que você mais ama pode sumir em um piscar de olhos. Maeve LeBlanc levava uma vida tranquila ao lado dos pais, até que um dia a garota sofre um ataque que resulta no sumiço repentino e misterioso de Katrina, sua mãe. Depois de meses tentando d...