Por um longo período de tempo, ninguém se atreveu a falar ou se mover. Ao longe, era possível ouvir o vento soprar. O próprio silêncio estava calado. O ar ao redor do ambiente era pesado, difícil até de ser respirado.
O impossível estava diante de seus olhos incrédulos.
Uma pessoa morta estava de volta ao mundo dos vivos.
Àquela altura, nada mais deveria surpreender. Até as impossibilidades deveriam ter limites.
Ou talvez não haja limites para nada, afinal.
Quem pode afirmar com certeza?
O mundo é feito de mistérios. Se cada um deles fosse desvendado, a vida não teria propósito.
Thaylla respirava com certa dificuldade, tentando com um óbvio esforço puxar ar para seus pulmões. Ela passou a mão pelo corpo, como se quisesse ter certeza de que estava tudo ali, em ordem. Seus olhos descontrolados giravam nas órbitas, confusos.
- O que houve? - ela perguntou com a voz rouca. A respiração estava entrecortada e ruidosa. - O que está acontecendo?
Ninguém disse nada.
Ninguém disse nada porque ninguém sabia o que dizer.
Qual era a melhor maneira de explicar a uma pessoa que ela havia acabado de morrer e logo depois, desafiando as leis da natureza, regressar à vida?
Thaylla, no entanto, não precisou de explicações. O olhar de choque nas expressões de seus amigos já entregava tudo. Ela olhou para o lado e viu uma faca em cima da mesma mesa em que estava sentada. A lâmina reluzente brilhava com o escarlate vibrante de sangue.
Seu sangue.
Ela baixou o olhar até seu peito ensanguentado, onde pôde ver através da blusa rasgada uma pálida cicatriz em formato de corda se formar aos poucos.
Uma calma assustadora tomou conta dela quando deduziu a verdade.
- Eu morri, não é? - sussurrou, olhando para o nada, para ninguém em particular. Não esperou por uma resposta. Falar aquilo em voz alta tornava a verdade mais clara. Uma vez que algo é dito, jamais pode ser retirado, e as palavras ficam pairando livremente pelo ar, afiadas e cruas, tendo o poder de destruir ou restaurar. - Eu estava... morta.
Octavian foi o primeiro a se recompor. Seus olhos eram caleidoscópios de sentimentos, tudo passava por eles: amor, alívio, felicidade, receio, fascínio, curiosidade. É impressionante o peso de emoções que alguém suporta carregar em seus próprios ombros.
- Como... - a voz de Octavian falhou. Ele pigarreou, limpando a garganta. - Como você se sente?
Thaylla divagou para longe dali. Sua mente a arrastava para outra dimensão, através de uma nova realidade jamais experimentada.
Ela levou um minuto inteiro para responder, desnorteada. Estava tentando aprender a usar sua voz novamente.
- Eu não sei explicar... me sinto... renovada.
Octavian se aproximou de Thaylla com movimentos sutis, devagar, como se tivesse medo de assustá-la. Ele ergueu as mãos como se fosse toca-la, mas ao invés disso elas apenas contornaram os traços de seu rosto, sem encostar em sua pele.
- Do que você se lembra? - indagou.
Para o espanto de todos, Thaylla abriu um sorriso nostálgico, lembrando uma pessoa idosa recordando momentos preciosos de sua infância.
- Uma batalha - murmurou ela. - Me lembro do uma batalha... Maeve, Rick e eu estávamos vindo para cá quando sofremos uma emboscada. Um grupo de Amantes do Alvorecer nos atacou, mas nós lutamos. - Thaylla riu, saboreando o gosto da derrota de seus inimigos. - Acabamos com eles. Foi uma luta maravilhosa. Nunca me senti tão bem em toda minha vida. Nunca me senti tão feliz por matar. Mas aí... - O sorriso de Thaylla foi sumindo aos poucos. - Alguém acertou uma faca bem aqui, no meu coração. - Ela cobriu o local ferido com a mão, como se o corte ainda estivesse aberto. - Então eu morri. Depois, lembro de estar caindo. Caindo em uma escuridão sem fim, sem nunca atingir o chão. Eu apenas sentia frio e caía, caía, caía... - Lágrimas se acumulavam no canto dos olhos de Thaylla, mas ela não se incomodou em esconder. - De repente, eu parei de cair em direção ao obscuro do abismo e, de algum modo, fiquei suspensa no ar. Era como se eu tivesse sido laçada por um tipo de corda invisível. Me senti segura. E eu ouvi vozes me chamando. Chamando meu nome, me pedindo para voltar. - Thaylla olhou para cada um dos amigos, mas seu olhar ficou fixo em Maeve enquanto falava. - Então eu comecei a subir. Flutuava cada vez mais alto. Parecia que eu estava sendo sugada de volta para a consciência. Finalmente, eu acordei. Foi como despertar de um pesadelo, mas um pesadelo vívido, palpável. Agora, estou aqui.
Thaylla estava chorando baixinho, como se fosse doloroso para ela relembrar sua experiência de quase morte. Ela baixou a cabeça e enterrou o rosto nas mãos. Seus ombros sacudiam levemente. Aquela atitude espantou a todos ainda mais. Thaylla era a mais durona do grupo. A mais forte, a mais fria, a que menos demonstrava fraquezas e sentimentos. Mas ali estava ela, chorando como uma criança. Mas ninguém poderia culpá-la. Quando se recompôs, ela olhou novamente para Maeve, mas diferentemente das outras vez em que ela fizera isso, havia ternura em seu olhar ao invés do habitual desprezo.
- De todas as vozes, a sua era a única que eu conseguia ouvir com mais clareza - Thaylla confessou, trêmula. - Sua voz me guiou até aqui. Você me trouxe de volta. Você me tirou daquele lugar horrível. Obrigada.
Maeve não soube o que responder.
E nem teve tempo para tal.
Thaylla a puxou com força para si e a abraçou.
Pega totalmente de surpresa e desprevenida, Maeve não soube o que fazer ou como reagir enquanto Thaylla murmurava repetidas vezes pedidos de desculpas e agradecimentos. Estava atônita demais com os últimos acontecimentos para fazer ou sentir alguma coisa. Ela se sentia entorpecida, como se alguém tivesse aplicado anestesia diretamente no seu cérebro. Não conseguia raciocinar, tampouco obrigar seu corpo a executar alguma ação. Estava totalmente desconectada de si mesma.
Nada daquilo parecia real. Nada daquilo parecia ou podia estar acontecendo de verdade. Parecia um sonho; uma alucinação. Tudo aquilo devia apenas ser fruto de sua imaginação.
Definitivamente, ela não havia ressuscitado alguém apenas com um mero sopro. Era muita loucura.
Mesmo com todas as coisas inacreditáveis que haviam lhe acontecido nas últimas semanas, aquilo era bizarro demais para ser verdade.
Maeve ainda não conseguia acreditar no que tinha acabado de fazer, e com certeza não conseguia acreditar que logo Thaylla a estava abraçando.
Porém, ela ainda estava ali, nos braços de Thaylla.
- Obrigada - murmurou Thaylla novamente. - Obrigada por me salvar da escuridão.
Mesmo desconfortável com a situação, Maeve deu leves tapinhas nas costas de Thaylla, que a soltou do abraço.
Maeve se afastou, e finalmente,passado o momento de pânico, a ficha finalmente caiu para todos: Thaylla estava viva.
Viva.
O espanto inicial que tomou conta do semblante de todos foi substituído pela alegria.
Octavian abraçou Thaylla, que retribuiu o gesto com a mesma intensidade. Em seguida os outros - Rick, Willen, Emily e Jully - foram se juntar a amiga e ao mentor, falando o quanto a amavam e estavam felizes por ela estar bem, passando antes por Maeve e lhe dando gratificações pelo feito heróico.
Maeve se sentia cansada. A fadiga corria por suas veias. Mas, mesmo assim, apesar de tudo, ela conseguiu abrir um sorriso ao admirar a cena que se desenrolava à sua frente: um grupo de pessoas que se amavam, envoltas umas das outras, gratas somente por terem a companhia uma da outra. Ela teve esperança de que, mesmo com todas as dificuldades e obstáculos de seu novo mundo, ainda houvesse uma chance de conseguirem conquistar a paz.
Ela foi retirada de seus pensamentos quando Joan e Brenda se aproximaram um de cada lado, cautelosos.
- Você tá legal? - Brenda perguntou.
Maeve fez um gesto afirmativo com a cabeça, embora se sentisse um pouco tonta.
- Como você fez aquilo? - Joan quis saber.
- Eu não sei, Joan - ela disse, sinceramente. - De verdade, eu não sei. Foi como se meu cérebro tivesse desligado e eu tivesse sido guiada por um instinto maior... - Maeve olhou para Thaylla, que ria alegremente com os amigos a sua volta. - De uma hora para outra, tudo que eu sentia era uma vontade devastadora de protegê-la. Apenas isso importava. Era como se eu vivesse para isso... - Maeve queria continuar, queria encontrar palavras para explicar. Sua boca estava aberta, mas não conseguia falar, então começou a gesticular com as mãos, tentando fazer com que as palavras saíssem. - Eu tinha que mantê-la viva, de um modo ou de outro. Foi essa sensação que me acometeu. Tudo ao meu redor se dissipou, me abandonou. O que me restou foi apenas a vontade de vê-la viva outra vez. Meus outros sentimentos e vontades já não importavam. - Ela balançou a cabeça, tentando se livrar desses pensamentos confusos. - Enfim, eu não sei o que aconteceu. Como poderia? Eu não sei o que fiz. Já não me conheço mais. Não sei do que sou capaz.
Joan e Brenda trocaram olhares preocupados, e Brenda logo se apressou em acalmar a melhor amiga.
- Ei, nós sabemos quem você é. Você é uma pessoa boa, nobre, de coração puro, que não pensaria duas vezes antes de se arriscar para salvar alguém, mesmo que isso lhe custasse caro. Você fez algo para ajudar alguém que até então nunca tinha sido legal contigo.
- Nós sabemos quem são as boas pessoas de verdade quando elas abrem mão de tudo para salvar os outros, mesmo que sejam seus rivais - acrescentou Joan. - O que você fez pela Thaylla hoje foi algo digno de uma heroína, Eve. Estamos muito orgulhosos de você.
Brenda assentiu, passando a mão com carinho pelas costas de Maeve.
- Não sabemos o que você é, ou do que você é capaz. Não sabemos se você é algum tipo de alienígena ou uma criatura mágica com superpoderes. Mas sabemos quem você é. Conhecemos sua essência. E amamos você por isso.
Maeve conseguiu rir, apesar das lágrimas que tanto lutou contra.
- Você pode ser uma máquina de guerra e destruição, mas sempre será nossa melhor amiga. Não importa o quanto as coisas estejam confusas. - Joan finalizou.
Os três se abraçaram, e Maeve desfrutou daquele raro momento de calmaria. As coisas estavam ficando cada vez mais perigosas, mais letais, cada momento de paz era mais que bem-vindo. Thaylla quase havia partido para sempre. Quem poderia ser o próximo? Ao assumir sua nova identidade de Herege do Eclipse, Maeve também assumiu os pesos dos riscos que vinham com essa responsabilidade. Tempos difíceis viriam pela frente, e ela tinha de reunir forças para enfrentar tudo. Só descansaria quando sua mãe estivesse em casa novamente.
Ela olhou para Octavian, e ele devolveu o olhar, sustentando-o. Seu rosto provavelmente devia parecer agora um livro aberto para todos lerem suas expressões, pois Octavian lançou para ela um olhar de quem sabia exatamente o que ela estava sentindo e pensando. Ele com certeza tinha noção das angústias de Maeve, mas logo em seguida ela se acalmou. Octavian sorriu, parecendo pleno e sucinto.
Eu irei explicar tudo, seu olhar parecia dizer. Sei que você tem dúvidas, mas logo elas terão respostas.
A aura de Octavian exalava tanta fé, tanta confiança e amor, que Maeve relaxou a ponto de sentir a tensão se esvair de seu corpo. O grupo abriu espaço e olhou para Maeve, Brenda e Joan. Eles sorriam para os três e sorriu, convidando-os de braços abertos a se juntarem a eles em sua pequena e íntima confraternização. Os três amigos foram até lá e se juntaram ao abraço coletivo. Maeve viu pelo canto do olho Joan enxugar uma lágrima cristalina do rosto pálido de Rick e em seguida dar um abraço forte no menino. Rick abriu um imenso sorriso de orelha a orelha, seus olhos verdes brilharam com a intensidade de mil esmeraldas.
Maeve e Brenda trocaram olhares com Joan e piscaram, o que resultou em um revirar de olhos do amigo, que mostrou a língua para elas e fez careta logo depois enquanto se soltava delicadamente do abraço de Rick.
Thaylla sussurrou baixinho apenas para Maeve ouvir:
- Não vá se acostumando com o meu carinho, ok? Ainda te acho uma idiota inútil.
Maeve riu verdadeiramente, sentindo-se feliz por ter Thaylla de volta.
- Isso é o que ganho por ter salvo sua vida? - retrucou Maeve.
- Bem, eu já agradeci. Agradeci demais por uma vida inteira. Agora, pode se acostumar. A velha Thaylla está de volta!
Maeve fingiu um olhar de decepção.
- A nova Thaylla era bem mais legal. Sabe? Carinhosa, gentil, meiga.
Thaylla riu, entrando na brincadeira.
- Por que você não me mata, me traz à vida novamente e reza à Allard para que a nova Thaylla fique permanentemente?
Maeve olhou para o alto e bateu um dedo no queixo, pensativa.
- É uma proposta realmente tentadora - respondeu ela -, mas eu prefiro esta Thaylla aqui mesmo.
Ao invés de responder, Thaylla apenas riu novamente e olhou para Maeve com malícia.
- Bem, se você prefere assim... não venha reclamar quando eu voltar a pegar no seu pé.
Enquanto brincavam e celebravam, Maeve não pôde evitar de pensar em Kyle, que por sinal não havia retornado até agora depois da briga que tivera com Willen mais cedo. Será que ele havia falado a sério quando disse que não se importava com a morte de Thaylla? Será que ele era mesmo tão insensível ao ponto de não se importar com o falecimento de uma amiga? Maeve se perguntou onde ele estaria agora, com quem e fazendo o quê. O comportamento agressivo e rebelde de Kyle a deixava assustada, mas ela preferiu deixar o assunto para depois.
Todos estavam se divertindo e comemorando. A alegria corria livremente pelo ar, enchendo todos de esperança, harmonia e felicidade. Parecia que as coisas finalmente iam se encaixando aos poucos. Eles se permitiram acreditar de que na hora certa, tudo ficaria bem.
É claro que não podiam estar mais enganados.
Terríveis acontecimentos estavam em marcha. Horrores indescritíveis os aguardava.
Ainda havia muito sangue prestes a ser derramado naquele calmo rio, e ninguém tinha idéia do quão perto isso estava de acontecer.
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Escolhidos - Entre os Hereges e Amantes [Livro 1]
FantasyTudo o que você mais ama pode sumir em um piscar de olhos. Maeve LeBlanc levava uma vida tranquila ao lado dos pais, até que um dia a garota sofre um ataque que resulta no sumiço repentino e misterioso de Katrina, sua mãe. Depois de meses tentando d...