Prólogo

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Pecado. O quão temível é o pecado. Quem resistiria a tais sedutoras juras do adversário? Que no pé do ouvido podia se ouvir o chamado, vindo como um doce sussurro. A transgressão dos justos, tão terrível, mesmo assim, cometida, até por aqueles que com fiel voz fazem seus votos ao vosso lorde, que com jugo e voz terna se entregam, o comprometimento de ser submisso ao senhor, é inevitável o impedir.

Mas havia um preço. No mundo dos homens, com a vida, eles tinham que pagar. Resulto do pecado atroz. Doloroso a palma, amargo a alma, doce aos lábios. Quem pecar, no fogo eterno sucumbirá. Aqueles que transgridem a lei de Deus, no fogo do inferno queimaram. Sem piedade. Sentiram a fúria, pagaram a dívida com seu couro.

Estava escrito.

Era assim, desde os primórdios da existência humana. O ser podre. Criados para servos, que sequer para isso eram de serventia. Frutos da mais pura iniquidade, coberta de suja heresia.

Em meio a tais sentenças, minha mente me levava a ela, o que me trouxe a essa noite, que vivo, com o coração em mãos, o peito pesado, lutando com suas forças contra a falta do órgão que o dava a vida. A caminhar pelos caminhos arduosos, como se estivesse descalço em um caminho de espinhos e cacos, eu andava pelo vale da minha perdição. Ela era o mapa, que me levava para o fundo, junto a ela. Estava escrito. Estava traçado.
Ela queimará. A justiça divina fez suas juras. Todos seus pecados, o corpo sujo de perversão, mesmo tendo se lavado no sangue dos inocentes, estava condenada. E por toda eternidade sua alma presa. Gritará por piedade, mas suas preces não serão atendidas. Estava condenada. Prisioneira do inimigo.

Meus batimentos descompassados já não batiam em sincronia a minha mente. Meu corpo vibrando em total desespero, medo, horror, o pânico me consumia, me mastigava, me engolia, lentamente, e eu gozava do fruto da maldade.

Em minha língua continha amargura, o mais puro fél.

Toda extensão do meu corpo suava, cada centímetro, minha cabeça doía, mesmo encharcado pela chuva meu corpo estava quente como brasa, meu interior era fogo, meu exterior era gelo.  Apressado me guiava para meu quarto, com o sapato em minhas mãos, a ponta fina do salto sobre meu peito me machucava, eu o prendia em mim como se eu fosse o perder a qualquer segundo.

Tal objeto possuía domínio sobre mim. O sapato da pecadora. Eu vi o momento exato em que se perdeu, eu não pude evitar de o apanhar. Ele gritava: "Venha até mim". E eu segui tua voz, como se meu corpo já não me obedecesse. Sem pensar, em minhas mãos logo estava.

Ela gritava com a sua dor, desamparada pela chuva, que levará consigo a sua dignidade, além de seu sapato.
Sua respiração desregulada, seus cabelos negros em volta de seu rosto com alguns fios fora de seu devido lugar, o vestido negro apertado fazia seu corpo ficar escultural, deixavam sua cintura marcada, destacando seus seios pequenos. A água escorria por seu corpo.

Mas, eu não olhei. Olhos santos não poderiam o pecado contemplar. Eu o rejeitei. Tudo que minha visão capturou foram vislumbres da meretriz. Hilda Furacão.

Ela corria, com desespero, eu conseguia sentir. Era possível tocá-lo.

E eu, o peguei.

Não fui capaz de soltá-lo até o momento em que cheguei no convento, por fim em meu quarto, fechando a porta atrás de mim, me deixei cair no chão, com o o salto ainda em mãos, o observei, minuciosamente, envolto por meus dedos gélidos.
Era negro com brilhos, reluzia em minhas mãos. Sua textura causava cócegas em meus dedos. Cada uma das lantejoulas pareciam ter sido postas a mão. O salto era alto, fino. A deixava alta, lembro de olhar para cima quando teus olhos encontraram os meus.

Uma parte dela foi posta em minhas mãos. Uma fração da pecadora, que era meu dever exorcizar. Aquela que era meu dever salvar sua alma do fogo ardente, ou ao menos, salvar as almas dos homens que eram seduzidos pelo demônio em que nela habitava.

Olhando para o objeto, ainda em minhas mãos, eu lembrei-me de seu olhar de fúria voltado a mim.

Tentei buscar algum vestígio de algo sombrio, atroz, demoníaco, que devia pairar sobre ela, mas não foi possível. O objeto não possuía a sua aura.

Por fim então lembrei-me das palavras do Padre Nelson, quando o mesmo me dava aulas, em minha cidade natal Santana dos Ferros, tempos saudosos que de minha mente não se apagavam. "O demônio se esconde em beleza. O anjo mais bonito, foi chamado Lúcifer, ser de luz, o demônio, o anjo caído." Esse era o poder dos demônios, seduzir para aproveitar-se dos mais fracos, era o que ele dizia. Seus ensinos, alertas sobre o perigo eram guardados em meu coração.

Essa sim, era a descrição perfeita para Hilda Furacão, um anjo meio demônio.

Histórias eram ditas sobre elas, que Senhora Loló repetia diversas vezes para mim, quando estava a tentar convencer-me de participar da manifestação contra ela. Esta mulher, Hilda Furacão, fizera homens ficarem loucos de amor por ela a ponto de entregar as próprias vidas por não poder tê-la, e se deleitava em ver o sofrimento dos pobres homens sobre ela. Entre outras histórias. Fábulas encantadas, com o toque de sua real maldição. Eu a temia.

Em minhas mãos eu tinha seu sapato.
Da mulher demônio. Suja, tão impura quanto a maldade dos homens. Uma meretriz. Uma mulher que sentia prazer no sofrimento por ela causado.
Hilda Furacão, anjo caído, alma corrompida por Satã, alma que por mim seria salva.

Voltei meus olhos para a cruz, acima de minha cama, com Jesus Cristo esculpido. A imagem e semelhança de seu pai. Braços abertos, o sangue a escorrer de teu corpo, as marcas do sofrimento do crucifixio. Teu rosto me olhava, como se estivesse a comigo dialogar, e eu, como seguidor, o escutava. Meu coração entendia, a promessa santa, não verbal, era escrita, escrita no livro da vida.

Hilda Furacão seria meu milagre.

A meretriz - Hilda Furacão Onde histórias criam vida. Descubra agora