Capítulo 14 parte 1

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Diante de meus olhos, perante o meu ser, a minha visão mal poderia ter fé no que se contemplava, estava a vibrar, corpo inteiro, minha alma a oscilar, como se eu já estivesse no limite de minha existência, já não era necessário mais nada para minha jornada ser completa. Meus pés firmes na terra, mas no céu eu já morava! Todos os males a se dissipar. Não existia mais corrupção no coração dos homens. As sete trombetas, ressoavam por minha mente, sendo tocadas por sete anjos, enquanto outros sete, a harpa sagrada seus dedos dedilhavam, delicadamente, deslizando, sentindo a virtude, alcançando a vitória eterna. Deus estava por vir! Já não era hora de as preocupações a alma infligir, os prejuízos já não eram de suma relevância, era tempo, era tempo de vitória, era tempo de deixar a virtude tomar posse de si, hora de ajoelhar-se perante a divindade, para se pôr em oração.

Meu coração poderia encher-se, o peito estufar-se, preenchido por soberba, pois seria eu a testemunhar tal presença, cujo se saísse de minha boca, para poder me gabar, mas isto eu não o faria, jamais, pois apenas tornou-me mais humilde. Seria implausível aos ouvidos de todos, tal qual ateus perante a obra de Cristo, e mesmo aos olhos tal beleza seria inexplicável, a conjectura que a mim se revelou. Maldito seja o que não pode crer na religião, pois imagem perante mim poderia ser considerada um motivo para a fé, a verdadeira comunhão, a salvação, o milagre. 

Isso já não se resumia em meus delírios noturnos, fantasias por minha cabeça geradas, os motivos pelos quais eu pensava ser vítima do Satã, ou um louco, sem escrúpulos, um perverso, cujo não merecedor do que era divino. Era real, passos a minha frente. Estava ela, a refletir seu esplendor, sua forma sobre o leve tecido branco, vestes iguais as minhas, porém, aquilo que sobre seu corpo repousava a transformava em um anjo, tão formidável, eu sentia meu sangue a borbulhar, jogado em um caldeirão meu corpo estava, eu queimava, entrando em ebulição, fervendo tão rapidamente que eu não era capaz de medir minhas ações tomadas, pois o cabelo pingando água da chuva caia sobre seu rosto, deslizando lentamente, Deus era o único que tinha total conhecimento de como eu desejava ser uma gota. Por trás dos fios castanhos, lá estavam seus olhos, que me causavam a impressão de estarem mais anil que nunca, o azul me refletia, tudo que no mundo habitavam naquelas íris se revelavam. A pedra de topázio que em suas orbes fizeram lar, a me encarar. Os lábios finos a tremer, de frio, e também por medo, medo de si, ela queria algo dizer, mas sua boca sequer um som emitia. Eu percorria com meus olhos cada milímetro dela. Em seus dedos havia tensão, ela segurava as mãos contra os seios, se eu me aproximasse eu seria capaz de ouvir o som que era emitido por seu coração, os batimentos, sinal de sua vida. Expressão de assombro, eu lia seu corpo, ela estava afoita por dentro, a tentar controlar, sua mente parecia estar hesitando, ela trancava a sete chaves algum pensamento, cujo eu não era de meu saber, mas como desejava. Saber tudo sobre aquela vida, era o que eu ansiava, seu interior a se revelar a mim, espontaneamente, todos anos de sua existência, absolutamente tudo que viverá, cada passo que andou, cada ferida que causou, seu passado, seu presente, seu futuro. Pois a conhecer a obra, eu estaria perto do artista, Deus, que a criou, a moldando, a perfeição em seu corpo, toda sua volúpia, e também o que a alma tenta corromper, para pôr fim, do pecado a resgatar. Era minha missão. Por isso eu aspirava.

-A chuva não cessa. Eu preciso ir embora Santo!-
O silêncio por ela foi quebrado, palavras tardias, as que ela tinha pavor de pronunciar, medo do fino toque visual quebrar, eu sentia isso, mas mesmo assim, ela deixou as palavras saírem. Sua voz estava rouca.
-Exatamente, o céu revela que a chuva não há de cessar tão cedo, então farei o que é prudente, te manter aqui. Cada vez a tempestade cai mais intensamente, não tem como eu deixar você ir!-
Eu era pacífico em minhas palavras, apesar de tudo que escondia dentro de meu corpo, que tirava a minha paz, roubando a alegria que eu pensava que em mim se manteria por tempos, após eu a contemplar, mas isso de mim estava sendo tirado. Mas desistir não era meu feitio. 
-Eu peço um Táxi, isso não seria um problema. Como eu poderia ficar aqui? Em breve vai anoitecer!-
O tom em sua voz aumentava conforme eu me mantinha decidido. Suas sobrancelhas a franzir, seus lábios pálidos a mostrar pequenos tremores. Ela era como eu. Ambos partilhavam de uma só comunhão, uma só paciência, uma só alegria, uma só infelicidade. Éramos imprudentes. Eu pude perceber isso de si.
-De jeito algum! Você já está aqui. Eu posso te proporcionar comida, cobertas quentes, tudo que for de sua necessidade. Então, por favor, mantenha-se calma. Você já está vestida, certo? Então, vamos fazer o que me é viável.-
Meus pés me levaram para perto dela, mas antes, me voltei a minha mesinha, madeira velha, simples, com adornos sobre ela, imagens de minhas santinhas, minha madrinha no meio, em toda sua virtude, a cuidar de mim, me protegendo e me guiando. A imagem trazia paz em meu ser, a Santa de Santana dos Ferros, em que em minhas orações dela eu me recordava, minha querida madrinha, quem me concedia minhas preces. 

Perto dela, se encontrava um pote de vidro, semelhante ao que outrora a Camélia fora dado, em suas mãos, pude me lembrar, da noite gélida e pálida. Quando ela parecia tão distante, que não era possível acreditar que sobre minha cama estava sentada. Que estava falando comigo. Era irreal. Tudo sobre aquela mulher fazia eu duvidar de minha lucidez. Se algum dia eu já tive a tal sanidade, eu não podia pensar mais nesses dias, pois a loucura eu estava entregue.
-Você provou da geléia? Aqui tem mais, na verdade, tenho um pequeno estoque.-
A última parte saiu com uma pequena risada, eu era obcecado pelo sabor suave que ela tinha sobre minha língua. Eu chegava a salivar só pela memória do gosto.
Eu estendi a ela, uma excitação percorreu meu corpo, desde os meus pés, até cada fio de meu cabelo. Aquele doce era sagrado. Receita divina, cujo eu me sentia perto de Deus sempre que tinha sobre minha língua. Se ela já tocou a língua da pecadora, então seria como se parte de sua alma já estivesse a ser renovada. 
-Sim, um pouco. É boa. Mas não quero comer nada agora, obrigada, de qualquer forma.-
Ela me observava atenta a cada detalhe. Parecia estar apreensiva. Da mesma maneira que eu, ela era capaz de me ler, eu era fluente em seu corpo, e ela era fluente no meu. Então eu já nem sequer me preocupava em ter algo a esconder dela. A linguagem de meu corpo demonstrava tudo que era de meu desejo, sem nada a ocultar, esperando que ela fizesse o mesmo.
-Tem certeza? Eu pretendo comer, mas parece rude te deixar apenas vendo.-
Disse, já abrindo o pote, e penetrando meus dedos lentamente no interior, e o trazendo até minha boca, sentindo-o sobre meus lábios, desfrutando de todo seu gosto, lambendo, engolindo, saboreando, e por fim, repetindo o processo, quantas vezes fosse necessário para a satisfação me atingir. Era tão bom. Eu desejava que ela se sentisse da mesma maneira, queria que em minha frente ela se deliciasse, então deixei o pote em cima da cama, onde agora, ao lado dela eu permanecia, com alguns centímetros de distância. Era estranho, parecia uma fantasia criada por mim, estar assim, com tanta proximidade. Será que eu estava a ser enganado pela minha fantasiosa mente? Sentia-me às vezes como um prisioneiro, eu era meu próprio guardião, que me mantia encarcerado, estava enclausurado por correntes fortes, que puxavam meus pulsos, cortando a circulação sanguínea, me deixando à mercê. 
-Está sujo-
Ela me disse, parecendo tentar conter uma risada. Meu corpo se retraiu. Passei as costas da mão esquerda sobre o rosto, sentindo meus lábios, que emitiam frio, para tentar limpar, e meus olhos encontraram os dela, a buscar aprovação.
-Não, deixe que.-
Sua frase não se completou, cortada ao meio, antes que pudesse terminar de falar, se aproximou mais ainda. Levando seus braços em minha direção, onde o indicador sobre a mandíbula repousou, e o polegar sobre o canto de meus lábios, onde deslizou, três vezes, tão lentamente sobre, como se quisesse prolongar o tempo, o toque, era tão quente, tão macio. Se a coragem meu corpo invadisse, eu poderia provar de seu dedo, o lamber, e eu sabia que teria o mesmo gosto da geleia que ela limpou de minha boca.
-Então você gosta mesmo de geleia.
Ela disse, após remover sua mão de minha pele, eu quase gemi em repreensão.
-Gosto. Gosto muito. É receita da minha mãe. Ela comia todos os dias enquanto estava me esperando. Ela sentiu muita vontade de comer essa geléia durante a gravidez, e certo dia, Cristo a revelou essa receita, em passo a passo, e ela seguiu, então, se apaixonou. Foi a primeira refeição que eu fiz após parar de mamar.-
Eu sentia felicidade em falar sobre os tempos em Santana dos Ferros. Compartilhar com ela, sobre quem eu era, isso fazia Deus contente, eu sabia. Era como se eu estivesse a escrever um novo capítulo da Bíblia Sagrada.

-Eu também tinha um doce especial, receita de família, mas não o como faz tempo.-
As palavras pareciam trazer memórias dolorosas, de bons tempos, pois as vezes as melhores vinham acompanhadas de melancolia.

-Por qual motivo faz tempo que não come?-
Eu tinha interesse em tudo sobre ela. Talvez o mínimo detalhe sobre sua vida, fosse o que abriria as portas para o milagre ser por minhas mãos realizado. Então era meu dever a conhecer. Corpo e alma.
-Pois não vejo minha mãe a tempos. Mas isso não é de relevância alguma-
Sua feição se fechou, sua voz foi ficando mais rouca, expressões duras, em contraste com a sua doce face.

-Perdão, sinto muito. Que Deus a tenha.-
Eu falei, me compadecendo dela. Sentindo desejo de a acolher em meus braços, mas isso não foi realizado.

-Seu coração ainda bate, mas ela não está viva, não para mim. E garanto que estou tão morta para ela, da mesma forma que ela em meu coração! Se for para falar sobre isso, é melhor eu voltar para a Zona. Pare de me aborrecer.-
Ela estava prestes a explodir, pude perceber, ela era temperamental, suas ações condizem com suas emoções, por isso era tão ruim em esconder de mim tudo que por sua cabeça se passava. Eu era atento a seus mínimos detalhes.

A meretriz - Hilda Furacão Onde histórias criam vida. Descubra agora