Velha Infância

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"Eu gosto de você
E gosto de ficar com você
Meu riso é tão feliz contigo
O meu melhor amigo é o meu amor"
(Tribalistas)

Diego~

“Oie.” Disse abrindo a porta do quarto do maior, sorri um pouco nostálgico ao observar três caixas grandes no canto onde ficava uma escrivaninha, o guarda roupa e as paredes não possuíam os pôsteres e fotos nossas coladas, de uma época onde resolvi que uma polaroide era tudo que precisava para ser profissional, a escrivaninha havia sido desmontada, os vans surrados não estavam jogados aos pés da cama, o violão que sempre estava encostado na parede ao lado da porta estava cuidadosamente guardado em sua capa, suspirei, a cama continuava ali, o guarda-roupa também, porém agora estava vazio, não havia as camisetas surradas de bandas de rock, nem os jeans pretos e colados, bagunçados de mais, para que tia Fátima surtasse pelo menos uma vez na semana.
“Oi...” Foi o que o jovem sentado em sua cama disse, seus olhos me avaliando de cima a baixo, vendo todas as minhas expressões e provavelmente sabendo o que eu pensava no momento, Amaury era a minha pessoa, a metade da minha moeda, minha alma gêmea e por isso, éramos melhores amigos. “Então... Pronto para nossa nova aventura?” O sorriso em seu rosto, moldado por uma barba rala que começava a nascer e era motivo de piadas entre nós, parecia sapeca e infantil de mais para o rapaz de dezoito anos, com seus um metro e oitenta e um e alguns músculos começando a se formar, desde que ele decidiu que era fitnes e embarcou na vida dos treinos e academia.
“Admito que estou um pouco ansioso, e com medo, nunca fiquei tanto tempo longe da minha mãe.” Comentei, sabia que com ele, eu não precisava esconder meus medose inseguranças,  sobre a mudança, ele não ia me chamar de bebê chorão apenas porque fui sincero ao falar que iria morrer de saudades da minha família, não era isso que a maioria dos caras fazia na minha idade. Ele se levantou da cama, veio até mim, jogando seus braços ao redor do meu corpo, me puxando para ele em um dos nossos muitos abraços compartilhados durante nossos anos de amizade.
“Não vai ficar tanto tempo sem ver ela... Mesmo sendo sete horas de viagem nós daremos um jeito. Sempre que achar que fica difícil de mais, eu prometo fazer de tudo pra te trazer de volta pra casa... Eu dou meu jeito.” Suspirei, sentindo seu cheiro gostoso, o perfume de ele usava desde quando tínhamos treze anos e nos conhecemos, simplesmente porque eu amava o cheiro nele e sempre fazia questão de comprar um vidro novo para presentea-lo, apenas por medo dele comprar um diferente. Ele não estava mentindo, Maury não quebrava nenhuma promessa, ele era a melhor pessoa que eu conhecia e jamais faria algo pra me magoar.
“Eu sei.” Falei o soltando, observei uma caixinha que estava em cima da sua cama, sabia que era uma daquelas artesanais de mdf que sua mãe amava fazer, a mesma enfeitada com rosas laranjas e brancas em papel de arroz, toda a tampa sendo decorada com meias perolas. “O que é que tem ali? Hum?” Perguntei curioso, mexendo em meus dedos, como sempre fazia quando algo chamava minha atenção,  mamãe me dizia que se eu fosse um animal, seria um hamster xereta, sempre enfiando meu nariz onde nao era chamado, Amaury revirou os olhos.
“Se eu falar que você não pode mecher, você não vai?” Eu deixei um beijinho em sua bochecha e caminhei até a cama, me sentando na mesma e pegando o objeto em mãos.
“Você jamais seria capaz de falar não para mim.” Conclui convicto, Amaury revirou os olhos novamente e se sentou ao meu lado, dando de ombros para o fato de eu estar abrindo a caixa, eu tinha razão afinal.
“Uou! Isso é...” Falei encarando o apontador prata em minha mão, havia mais coisas ali, mas aquilo foi o que chamou minha atenção, porque era especial para nós dois.
“Ele mesmo.” Falou, observando o objeto em minhas mãos, um certo carinho em seu olhar.
Amaury e eu nos conhecemos na escola, seu pai é caminhoneiro e acabou se mudando de Minas para São Paulo, a fim de trabalhar em uma transportadora e de perseguir o sonho do filho, que era fazer teatro.
Vi ele pela primeira vez quando tinha treze anos, eu havia estudado minha vida inteira naquele colégio e todos me conheciam, a maioria tinha um contato amigável comigo, os da minha sala sendo meus principais amigos.
Quando o garoto moreno, de sorriso bonito e cabelos com cachinhos passou pela porta, chamando atenção de todas as menininhas da sala e virando o motivo do burburinho no intervalo, eu quis conhecê-lo, decidi fazer isso puxando assunto, pedindo seu apontador emprestado, mesmo o meu estando fielmente guardado em meu estojo, já que eu era super organizado com meus materiais, tinha que ser, afinal, não poderia dar mancada e me distrair de mais. Não, foi sua resposta ao meu pedido.
Daquele dia em diante, passamos mais ou menos três meses sendo inimigos declarados, todos sabiam sobre nossa ‘rixa’, ninguém realmente se metia no meio, mesmo tendo amigos em comum, ele julgava meu excesso de simpatia, a forma como falava alto e com sotaque e minha mania de inteligência, enquanto eu usava e abusava do fato dele ser ruim em futebol, ser extremamente relaxado em seus trabalhos de escola e um tremendo de um galinha, que mesmo tão novo dava em cima de todas as garotas da escola...
Nosso ódio mútuo durou até que fomos obrigados a fazer um trabalho de filosofia, naquele dia fizemos bem mais que um trabalho, descobrimos coisas em comum, como músicas, filmes, séries e o principal, um sonho: ir estudar em alguma escola para atores no Rio.
E era exatamente isso que estávamos fazendo agora.
“MENINOS! VAMOS!” Foi tia Fátima quem gritou, fazendo com que Amaury e eu fossemos em direção a sala, as caixas seriam mandadas de ônibus depois, levaríamos apenas as malas, meus olhos se encheram de lágrimas ao focar a visão em meus pais, que sorriam, nervosos de mais com o fato do seu unico e amado, um pouco mimado, filho, estar mudando de estado.
“Filho...” Mamãe falou, chorando e me abraçando apertado, meu pai, fazendo o mesmo, agarrando nós dois como se não fosse capaz de nos soltar nunca. “Eu vou sentir tanta sua falta bebê!” Foi o que saiu de seus lábios, eu concordando, meu coração sabendo que um pedaço continuaria aqui, em São Paulo, com minha família.
“Se cuide meu amor... Papai sempre vai estar aqui, te esperando...” Meu pai disse, muitas lágrimas em seus olhos, ele sempre foi um homem facil para chorar, havia herdado isso dele, choravamos assistindo filmes, séries, propagandas de Natal e lendo livros. Mamãe não, ela nunca chorava, na verdade, podia dizer que essa era a segunda vez que eu via ela chorar, a primeira sendo quando vovô faleceu.
“Eu amo vocês!” Foi o que consegui dizer, um sorriso rompendo através da minha garganta, a dor da saudades já ali, mesmo o calor e o cheiro deles estando presente, pelo som na sala, eu sabia que Amaury e seus pais estavam do mesmo modo. Decidimos que iríamos para a rodoviária de uber, evitando ao máximo uma grande e desnecessária comoção, Amaury também queria que eu tivesse um tempo para me distrair, se não ficaria com dor de cabeça a viajem toda, ele tinha razão.
Me soltei dos braços dos meus pais, após mais alguns eu amo vocês e também, umas trinta recomendações da minha mãe sobre sobrevivência. Abracei tio Geraldo e tia Fátima, que me abençoaram e disseram que me amavam, eu sabia que era verdade, eles foram como pais pra mim, um complemento da minha família durante todos esses anos. Olhei para o lado, para ver meu pai sussurrar algo no ouvido de Amaury e o rapaz concordar, um sorriso doce em seus lábios grossos.
Uma hora e meia depois estávamos devidamente acomodados no ônibus.
“Como você está?” Perguntei, cutucando a bochecha do maior com a ponta do meu dedo,  o esmalte preto descascando em minha unha curta, meu unico traco emo, que havia sobrado da pré-adolescência. Os olhos dele vagando para os meus, um sorriso se formando, enquanto sua mão se estendia, a palma para cima, um pedido silencioso para que eu colocasse a minha sobre, atendi o pedido rapidamente, apertando seus dedos longos ao redor dos meus, um encaixe perfeito.
“Contando que você esteja comigo, ficarei bem.” Eu suspirei, sorrindo feliz.
“Eu amo você.” Sussurrei, recebendo um beijo na testa, ele não precisava responder, eu sabia a sua resposta.

“Aaaaaahhh” Dei um gritinho, girando ao redor do meu corpo, o apartamento era pequeno, possuía uma cozinha, que era integrada com a sala, um banheiro pequeno e dois quartos também pequenos, o que ganhou meu coração era a pequena sacada.
O apartamento foi comprado por nossos pais, com um dinheiro que eles haviam reservado para as faculdades e também de uma indenização que seu Geraldo recebeu por uma causa trabalhista, os móveis, simples, porém novos, são frutos de quatro anos de trabalho meu e do Amaury, já que desde quando decidimos morar juntos, começamos a juntar o máximo de dinheiro possível, enquanto nossos amigos estavam em roles, nós dois estávamos entre trabalhar e maratonar séries, já que não podíamos gastar mais que o necessário, com relação a escola de teatro, nós conseguimos duas bolsas de cem por cento, a de Amaury vindo um ano antes da minha, porém ele conseguiu prolongar o prazo, com a desculpa de precisar terminar o ensino médio, na realidade ele só estava me esperando...
“Como você se sente em uma cidade diferente, longe de casa e emancipado?” Eu gargalhei, a emancipação veio com a necessidade de precisar assinar documentos, ir ao médico e me virar sozinho, caso fosse preciso... Mesmo que em alguns meses eu vá ser legalmente de maior.
“No direito de tomar algumas cervejas?”  Ele sorriu pra mim e em seguida olhou nossas malas, jogadas em um canto da porta, tirei meu tênis e me joguei no sofá, ligando a, não tão grande, televisão que havia ali.
“Bom... Eu compro, mas você me ajuda com as malas amanhã.” Foi seu combinado e eu realmente não me importava de aceitar, odiava a forma como Amaury não conseguia dobrar suas próprias camisetas sem formar vincos em lugares desnecessários.
“Parece justo pra mim...” O maior então estalou os dedos e saiu pela porta de entrada, nós havíamos visto um mercadinho aqui perto, então sabia que logo ele estaria de volta. Juntando um pouco da minha coragem que restava, após sete horas em um ônibus e mais cinquenta minutos em um uber, me levantei, peguei minhas duas malas e as arrastei até um dos quartos, sorrindo ao ver as paredes ainda lisas e sem nenhuma marca de uso, assim como a cama impecavelmente arrumada e o cheiro de móveis novos... Não via a hora de começa a ver o lugar criar histórias, coloquei a mala sobre a cama e a abri, sorri ao ver o único objeto que havia trazido comigo e não mandado no caminhão, um porta retratos, na foto havia um Amaury com cabelo esquisito, bem menor e mais magro, algumas espinhas aqui e ali, e um Diego mais gordinho, do tamanho do seu amigo na época, o cabelo descolorido e os olhos grandes se destacando, estávamos abraçados e ríamos... Abri o porta retrato apenas para ler a frase  ali escrita: Eu te amo DiDi, ida e volta até a lua rapidinho. Passei a mão sobre a letra feia e torta, meu coração um pouco mais acelerado que o normal, um calor se espalhando por meu rosto enquanto eu mal conseguia segurar meu próprio sorriso.
“Que merda esta acontecendo comigo?”  Me perguntei confuso, ultimamente Amaury vinha me trazendo algumas sensações diferentes, eu não sabia lidar com elas, provavelmente havia algum tipo de explicação hormonal, ou seja lá que merda fosse. A questão é que ele não podia desconfiar do quanto eu gostava de ficar perto dele e de como certas atitudes suas me faziam feliz, de um jeito diferente ultimamente, mas nós éramos melhores amigos e bem... Amaury não era gay ou algo do tipo.
Minha ficha de que eu era gay caiu a um ano atrás, eu estava no auge dos meus dezesseis anos e não compartilhava a mesma empolgação que os outros garotos quando o assunto eram peito e bundas, porém adorava ver os rapazes que jogavam inter classe se alongando , ou a forma como as bermudas dos times ficavam apertadas em suas coxas grossas, foi no fim de um desses jogos que eu percebi o porquê as garotas não pareciam nada atraentes pra mim, o problema não estava nelas como eu pensava, apenas era diferente pra mim, porque eu sou gay.
Amaury, conforme foi crescendo, foi aprendendo jogar futebol e até mesmo a participar desses jogos escolares, nós já estávamos no ensino médio e ele era um dos garotos mais bonitos da escola, a opinião pública não mente, então no fim de um jogo acabei indo até o vestiário do centro de esportes onde jogavam, não havia mais nenhum garoto lá quando entrei, por isso não vi problemas, mas nada havia me preparado para ver o jovem de dezessete anos nu, tomando seu banho distraidamente, percebi que estava ferrado porque meu próprio corpo adolescente e imaturo me traiu.
Sai de lá correndo, desesperado e sem saber como agir, eu deveria ter ido com Amaury embora, mas na hora não pensei nisso, apenas pegando o ônibus e indo pra minha casa, as lágrimas no meu rosto, incontroláveis, mostravam toda a aflição que se passava dentro do meu peito, eu estava assustado, com medo e com vergonha do que havia acontecido no banheiro, o jovem era meu melhor amigo, eu jamais poderia olhá-lo com outros olhos, ou nossa amizade iria ser destruída por minha culpa.
“MÃE!” Gritei assim que entrei em casa, meu celular com três chamadas perdidas do moreno, que ficou para trás.
“Filho?” Ela veio correndo da cozinha, provavelmente achando que algo ruim havia acontecido, seus braços me contornando enquanto ela perguntava repetidamente o que houve.
“Eu sou gay.” Falei, ou melhor cuspi para fora, na hora parecia que eu dizia um absurdo, mas eu estava totalmente assustado com isso, porém sabia que minha mãe e meu pai jamais me julgariam, eles me criaram assim, para confiar neles sempre.
"Oh amor! Tudo bem... Tudo bem..." Ela disse, acariciando meu cabelo e me arrastando até o sofá, nossa vira-lata descendo, claramente incomodada por dividir o espaço conosco, fechei os olhos, ainda em choque. "Querido, estamos e sempre estaremos com você, te protegendo de qualquer um que lhe faça, ou tente fazer mal... Porque esse choro?" Eu a encarei, meu rosto todo vermelho e inchado, minha cabeça começando a doer, sempre acontecia quando eu chorava assim, meu nariz já trancado por conta das mil alergias que eu possuía.
"Eu soube..." Suspirei frustrado. "Quando vi Amaury... Ele estava tomando banho, eu não imaginava, jamais invadiria a privacidade dele assim."
"Querido... Você está apaixonado por ele?" Ela perguntou, um sorriso calmo em seus lábios, a frase saindo lenta, como quem fala com uma criança.
"O que? Não... Não. Nossa que loucura." Afirmei, meu coração batendo tão forte que o escutei em meus ouvidos, a vermelhidão do choro, sendo substituída por um calor em meu rosto, encarei a porta, como se algo muito interessante estivesse acontecendo com a madeira desbotada.
"Certeza? Todos esses anos... Eu vi sinais..." Ela concluiu, eu suspirei, mamãe era durona, mas quem a conhecia sabia que ela era uma eterna romântica.
"Você vê coisas de mais mulher." Comentei, desviando do assunto, limpando meu rosto e sorrindo um pouco, mais calmo agora que deixei sair.
"Bom, vamos contar ao seu pai que ele não terá uma nora e sim um genro, no futuro." Foi o que ela disse, como se soubesse de algo que eu não sei.
Se naquela tarde, papai disse que eu demorei pra perceber o que todos já sabiam e me zoou por isso, ninguém precisa saber. Amaury logo ficou sabendo, já que apareceu lá em casa, desesperado com meu sumiço, nós dormimos abraçados naquela noite, após uma maratona de filmes da Disney, ele dizendo que sempre estaria ao meu lado, uma promessa trocada, na escuridão do meu quarto, nossos mindinhos juntos, enquanto as cobertas serviam como fortaleza, contra qualquer preocupação e mal.

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