Capítulo 6 - "Ela era lésbica", assim como eu

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Ela deveria estar feliz, esse era o sinal que ela precisava, a chance para sua redenção. Mas, enquanto arrumava suas malas e caminhava de roupas civis até o ponto de ônibus, ela sentiu vontade de desmoronar. Como se cada passo estivesse roubando sua vontade de viver. Ela percebeu, enquanto estava sentada assistindo ônibus após ônibus parando e esperando que ela tomasse uma decisão, que era incapaz de aceitar isso. Ela sentia como se estivesse atentando contra si mesma, como se soubesse que tinha uma passagem só de ida para a desolação pelo resto de sua vida, para se esconder dentro de si mesma e nunca mais ser vista.

Ela sentiu que isso acabaria com ela de verdade. A decisão que tomou há um tempo, de destruir quem ela era e passar o resto da vida implorando por perdão, estava chegando ao fim aqui. Finalmente, se apossando dela a queimando, transformando-a em nada.

Foi quando ela questionou pela primeira vez a possibilidade de que talvez ela merecesse existir como ela mesma.

Era um pequeno pensamento que não veio sozinho: um questionamento que já estava em um terreno estranho com seus votos de castidade, agora adicionando desobediência a eles... Ela não sabia ao certo se era pior. Era como se tudo estivesse se desfazendo de uma vez. Então, o controle rígido e firme que ela tinha sobre sua própria disciplina estava amolecendo, e ela começou a sentir algo ainda mais assustador: liberdade.

A igreja nunca foi seu guia moral. Ela sabia que era devota à essência da religião, à mensagem, a Deus e aos guias para agir eticamente, portanto, virar as costas às ordens diretas da linha de comando superior não trouxe muito conflito. Foi mais como uma confusão, uma dúvida sobre qual era seu lugar em relação à igreja e seu contrato com ela.

Isso não a impediu, é claro, de chutar a bunda da Crimson e gostar muito disso, de deixar o convento e pedir ajuda no mesmo laboratório que ela havia invadido uma vez. A vida é irônica assim.

Ela ainda estava sentindo isso, a liberdade, a falta de direção, o questionamento. Mas ela sabia de uma coisa: ela acreditava em Ava e estaria lá para ela até o fim, mesmo que ela fosse teimosa, infantil, inadequada e adorasse tirar sarro de tudo que Beatrice considerava sagrado. Ela tinha intenções puras, era genuína, queria fazer o bem e Beatrice via muito mais nela, ela via seu coração.

Então ela permitiu que ela visse o dela também.

"Ela era lésbica", assim como eu.
Beatrice olhou para Ava, tentando saber se ela perceberia, se ela se entregou como ela achava que tinha acabado de fazer, conectando os poucos pontos que ela já tinha do momento no corredor em que ela falou brevemente sobre seus pais, mas a ideia passou despercebida por ela.

Beatrice continuou murmurando palavras que a aterrorizavam, que tinham um significado tão pesado, vergonhoso e traumatizante que pronunciá-las em voz alta parecia invocar forças malignas para vir e levá-la de volta. Mas Ava, a boba e genuína Ava, as repetia em voz alta com uma risada zombeteira, roubando seu peso, transformando-as em versões estúpidas de desenho animado dos demônios que ela visualizava, e que a perseguiam, tornando-as leves, não tão ruins, não tão vergonhosas. Não tão assustadoras.

Um lado obscuro e reprimido dela queria ouvi-la dizendo aquelas palavras de volta com desdém, nojo ou desaprovação. Ela queria se livrar de qualquer possibilidade de uma vez por todas e parar de sofrer por isso. Mas Ava deu a ela o oposto: um sorriso que fez o som pousar suavemente como uma pena. A desaprovação era... pela primeira vez em sua vida, para aqueles que a rejeitaram.

Uma ideia tão radical, estranha e fora do comum, que fez seu coração disparar.
A liberdade era assustadora e emocionante, assim como ela. Ela se perguntou o que Ava faria se ela mostrasse mais a ela, se ela não deixasse nenhum espaço para dúvidas sobre quem ela é.

Talvez, talvez fosse isso que ela precisava: um empurrão final, um golpe para fechar seu coração de uma vez por todas e se recolher na vergonha, para que aprendesse a nunca mais abri-lo. Porque é isso que ela merece depois de ousar ter esperanças pela primeira vez em tantos anos.

Foi o que ela fez, mas não esperava que, ao abrir uma pequena fenda, toda a represa desabasse. Ela acabou se abrindo completamente, mostrando a Ava a parte mais vulnerável, vergonhosa e escondida dela: sua dor.

Uma dor que ninguém nunca tinha visto, nem mesmo seus pais, nem mesmo suas irmãs, nem mesmo as mesmas pessoas que a julgaram e decidiram que ela nunca seria boa o suficiente. Essa dor estava escondida, guardada, crescendo e fermentando, e silenciosamente a envenenando. E ela, em seu último impulso insano e desesperado, a mostrou para Ava.

Ela esperava concordância. "Sim, Beatrice, você merece tudo isso. Você é má, imperfeita, ruim. Você precisa mudar ou pelo menos esconder quem você é, porque ninguém quer ver isso. Isso nos enoja. Isso nunca será n-"

"Não odeie o que você é", ela ouviu em vez disso. Beatrice levantou os olhos marejados, sentindo-se atordoada. Quase pensou que era sarcasmo, que se olhasse para ela, a veria rindo, zombando dela, tirando sarro de sua dor. Mas Ava não era cruel. Ela nunca seria cruel. Seus olhos eram sinceros e cheios de... algo semelhante a um reflexo de sua própria dor, como se ela pudesse ver exatamente o que ela havia sentido durante todos esses anos agonizantes em silêncio. "O que você é é lindo".

Algo se rompeu dentro dela, e Beatrice ouviu, sentido uma centelha tão diferente de tudo, tão fiel para com a sua vida antes desta. Era como uma névoa que finalmente estava se dissipando. Ava quis dizer aquelas palavras. Ela realmente pensava isso, plantando a ideia de uma possibilidade: que o que ela era... não era errado e perturbador, que ela não estava condenada e não merecia sua dor. A ideia parecia tão louca e ilógica, mas, mais uma vez, ela sempre acreditou em Ava. Não seria irracional acreditar nela desta vez também.

• Todos os direitos reservados a @/Double_Dublin autor(a) do título de 'The Cure For Deviation' publicado originalmente em inglês no AO3 •

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